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sexta-feira, 15 de maio de 2015

COIMBRA


O rei D. Dinis e a rainha D. Isabel de Aragão, que tinham contraído núpcias em Trancoso, encontravam-se no seu palácio situado na cidade de Coimbra .
A rainha, que era muito caridosa e amiga dos pobres e necessitados, costumava distribuir pão e outros alimentos a todos os que se acercavam das muralhas do castelo. Eram pedintes que já conheciam o bom coração da esposa do rei e não faltavam à perspetiva de um óbolo, de um pão e de uma palavra de carinho, que D. Isabel sabia muito bem dar a quem mais necessitava.
Dirigindo-se ela com o regaço cheio de pães para distribuir a um magote de pedintes pobres, calhou dessa vez o rei observar as movimentações da esposa, pois ele encontrava-se numa das janelas do palácio. Intrigado, não só porque a esposa transportava alguma coisa no regaço, escondida pelas pregas do vestido, mas porque também observava a numerosa fila de indigentes que se acercavam, desceu à pressa para lhe toldar o passo e perguntar:
“Que levais no regaço, real senhora?”
Ela olhou o esposo com o carinho que lhe dedicava e respondeu com toda a calma e cortesia que aprendera no velho castelo de Aljacerias, em Aragão, onde foi educada e criada:
“Rosas, senhor, são rosas.”
O rei admirou-se e olhou desconfiado para o regaço recolhido e bem cheio. Ele bem sabia que não eram rosas o que ela lá trazia antes de fazer a pergunta.
“Rosas? Rosas em janeiro! Mostrai-mas!”
“Senhor, é como vedes!”
D. Isabel abriu as pregas do vestido e deixou cair à frente do esposo dezenas de rosas brancas.

O rei, que não era tolo, verificou que ali havia um milagre, para o qual só encontrava explicação na extrema caridade de sua esposa.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

SABUGAL


Pela Páscoa entraram em Vilar Maior muitos cavaleiros armados, montados em cavalos brancos e decidiram fazer uma espera às moças solteiras que iam para a missa.
Um alferes disse:
“A virgem de verde bem me agrada, mas eu queria a de azul. Pois hei de roubá-la ao seu pai ainda que isso me custe a vida.”
Ainda não era meia-noite quando o alferes bateu à porta dos pais da moça. Apareceu a mãe à porta .
 “Eu não venho por ti, velha, mas venho por tua filha.”
 “A minha filha não está cá. Está em casa da prima.”
O alferes pegou numa candeia e entrou pela casa adentro, indo encontrar a rapariga a dormir no seu leito.
Acordando com o reboliço, a moça suplicou:
“Por Deus te peço, alferes, e também pela Virgem Maria, que me deixes vestir uma alva camisinha e que me deixes rezar uma só Avé Maria à Senhora do Castelo, pois é minha madrinha.”
Saindo com a rapariga, o militar ainda ouviu a mãe dizer:
“Olha minha filha, não sejas desonra minha.”
Mais tarde, o alferes trouxe a moça nos braços e entregou-a à mãe:
“Aqui tens a tua filha. Ela não se quis vender e tirei-lhe a vida por isso.”

“Venha cá a minha filha, pois antes a quero ver morta que a sua honra perdida.”

segunda-feira, 11 de maio de 2015

SEIA


Na Senhora do Desterro, em S. Romão, encontra-se um penedo que, pela sua configuração natural, se assemelha à cabeça de uma mulher idosa.
Em tempos viveu na serra uma jovem chamada Leonor, que era rica e bonita, mas que vivia sob a tutela de D. Bernardo, seu tio, e com uma velha aia de nome Marta.
O tio de Leonor, que era cruel e despótico, rejeitava o namoro da sobrinha com D. Afonso, um fidalgo arruinado e muito pobre. Para contrariarem a resistência de D. Bernardo, os dois enamorados encontravam-se às ocultas, sempre com a ajuda da velha aia. Confiavam na velha, pois ela garantira-lhes que se algum dia os traísse seria transformada numa pedra.
O acaso fez com que certo dia, vindo Marta com uma carta de D. Afonso para Leonor, o fidalgo obrigou-a a entregar-lha a ele. Era a marcação de um encontro, mas sem dizer o local e hora, pois só a criada o sabia. O tirano conseguiu arrancar à velha o segredo, após ameaças de morte.
Quando D. Afonso se encontrou com Leonor, com Marta a acompanhá-los de longe, como era hábito, mas incapaz de os avisar do perigo, foram alertados por gritos. Os dois apaixonados deslocaram-se ao sítio onde sabiam que Marta os aguardava e encontraram a velha transformada em pedra. Logo suspeitaram do que se passava e fugiram para a Galiza. Regressaram mais tarde, após a morte do tio, e foram ao mesmo lugar. Lá estava a cabeça da velha Marta.

Aí mandaram erigir uma capela.

domingo, 10 de maio de 2015

ALANDROAL


À ermida de Nossa Senhora da Boa Nova, em Terena, anda ligada uma lenda.
Havia há muito tempo uma prisão junto do mar onde um homem se encontrava algemado de pés e mãos. Este homem clamava inocência e ninguém acreditava nele. Nem mesmo o carcereiro, que o via todos os dias, o tomava por pessoa inocente, limitando-se a deixar-se alguma comida e água, indiferente à imobilidade da clausura do homem.
Certo dia, levava-lhe o carcereiro a comida quando viu que as algemas tinham desaparecido. O homem encontrava-se no cárcere, como sempre, mas tinhas as mãos e os pés livres e os instrumentos que o detinham não se viam em lado algum.
O carcereiro perguntou-lhe:
“Como conseguiste libertar-te? O que fizeste às algemas?”
O homem encolheu os ombros, também perplexo:
“Eu não fiz nada. Elas desapareceram!...”
De novo foi algemado e acorrentado, mas de nada valeu. No dia seguinte o homem estava de novo livre dentro da cela. Desta vez o preso parecia ter uma explicação:
“As algemas devem encontrar-se na ermida de Nossa Senhora da Boa Nova, em Terena.”

O preso tinha razão, as algemas foram encontradas na ermida. O milagre comprovara a sua inocência e, por isso, soltaram-no.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

ÁGUEDA


Na freguesia de Préstimo e cerca de A-dos-Ferreiros existe uma ponte sobre o rio Alfusqueiro.
Diz a lenda que um cristão encarregou-se da obra, mas quando a decidiu começar encontrou uma tarefa difícil, quase impossível. Quando já desesperava, apareceu-lhe o Diabo:
“Não te preocupes, que eu e os meus ajudantes fazemos a ponte para ti.”
“Fico-te agradecido”, disse o homem.
“Mas não tens de agradecer, pois negócio é negócio. Em troca deste favor, entregas-me a tua alma.”
Passou para as mãos do homem uma escritura e disse-lhe que a devia assinar com o próprio sangue. O homem assim fez e o Diabo confirmou:
“Comprometo-me a acabar a obra no dia de Natal, ao cantar do galo, à meia-noite.”
O Diabo e companheiros começaram a obra e na data aprazada estavam prontos a dá-la por terminada, à meia-noite em ponto. Porém, uma fada apareceu ao homem e aconselhou:
“Assim que o Diabo colocar a última pedra, atira este ovo ao longo da ponte.”

O cristão assim fez. Um minuto antes da meia-noite, quando o Diabo estava a colocar a última pedra, atirou o ovo e este partiu-se. De dentro saiu um galo e cantou. Ludibriado, julgando ter perdido a aposta do contrato, o Diabo deu um estouro e nunca mais por ali passou.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

MANTEIGAS



Consta que o deus Hermes, da mitologia grega, se veio hospedar no vale do Zêzere e em terras da serra, porque achou ser este local o ideal para se afastar de outros deuses inconvenientes. O vale do Zêzere era então um glaciar em movimento. Decidiu o Hermes estabelecer aqui o seu povo nómada de pastores com os seus rebanhos, escolhendo para junto dele os mais destemidos e os mais fiéis, tanto prontos para a pastorícia como para a guerra.
Certo dia, descobriu Hermes, entre o povo de pastores, uma mãe que embalava uma criança no seu colo. Era uma menina tão encantadora que deslumbrou o próprio deus da magia. Era com essa criança que ele queria fundar o povo ideal, capaz de apascentar os rebanhos de ovelhas e cabras, de fazer o queijo e outros produtos derivados do leite dos animais. Assim, enviou um touro, mais provavelmente um auroque, para que ele a arrebatasse das mãos maternas a criança e lha trouxesse.
O touro partiu a cumprir a ordem. Chegou junto da mãe e, com um dos chifres, pegou na criança pela roupa e partiu à desfilada, indiferente aos gritos da mulher.
Se o touro fez ouvidos moucos à gritaria, não o fizeram os pastores que se juntaram na perseguição do bovino.
De súbito, no vale, em pleno prado de pascigo e junto aos salgueiros do rio, o auroque estacou e, com o mesmo cuidado que levou no transporte, assim depositou a criança na erva.
Quando os pastores chegaram junto do animal, repararam que este aquecia a criança com o seu bafo. A mãe chegou-se sem temor junto dela e perguntou:
“Hermínia, minha filha, estás bem?”
O sorriso da pequena foi a resposta que ela esperava.

Os pastores decidiram, dar ao vale e aos montes o nome da criança, que passaram a ser conhecidos como Montes Hermínios e trataram de dar nome ao lugar: Manteigas.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

ALBERGARIA-A-VELHA


Na margem direita do rio Vouga, viveu em tempos um pescador que decidiu não casar. A sua vida era dura, a faina difícil e ele achou que não estaria à altura de sustentar uma companheira. No entanto, o seu maior desejo, mesmo um sonho, era ter um filho. Com fervor, dirigia as suas orações e o pedido a Nossa Senhora das Neves:
“Senhora das Neves, concedei-me um filho! Dai-me esse anjo!”
Nunca se esquecia de fazer o mesmo pedido em todas as orações. Até que, certo dia, andando na sua barca a pescar, viu uma caixa a boiar nas águas. Remou até ela e recolheu-a. Para sua admiração e contentamento, dentro da caixa vinha uma criança do sexo masculino.
Satisfeito e incapaz de silenciar a sua alegria, o pescador mostrou aquele “filho” a toda a comunidade piscatória.
O tempo foi passando e o rapaz foi crescendo. Ajudava o pescador, tratando-o por pai e guardando-lhe todo o respeito. Não se recusava perante qualquer tarefa, era humilde e diligente. Em determinada altura, porém, uma epidemia começou a dizimar a população e o rapaz adoeceu.
Implorou o pescador novamente a Nossa Senhora para lhe salvar o filho.
“Aqui estou”, disse Nossa Senhora. “Venho buscar o anjo que te dei para o levar até à corte dos anjos. Anjo seja.”

Como anjo da guarda da comunidade, o rapaz foi com Nossa Senhora e a epidemia acabou. A terra do “anjo seja” ficou a chamar-se Angeja.

terça-feira, 21 de abril de 2015

VILA NOVA DE FOZ CÔA


Uma mulher casada de Freixo de Numão teve necessidade de amassar o pão e verificou que não tinha água nos cântaros da casa para aquecer e misturar na farinha. Era meia-noite, mas como tinha necessidade de ter o pão cozido de madrugada, disse ao marido:
“Olha, homem, não tenho uma pinga de água para fazer a amassadura do pão. Sei que é tarde, mas tenho que ir à fonte com o cântaro.”
O homem franziu o sobrolho e disse-lhe, quase em súplica:
“Olha, mulher, não vás. Agora não vás!...”
A mulher achou a preocupação do homem despropositada, fosse ela qual fosse, pelo que teimou em ir e foi. Pegou no cântaro e dirigiu-se à fonte de chafurdo da Bica.
Quando ia a mergulhar o cântaro na água da fonte, veio um cão do escuro e rasgou-lhe com os dentes um saiote de baeta vermelha que levava vestido.
Levou o cântaro mal cheio e correu até casa, não fosse o caso de o cão voltar a atacá-la. Chamou pelo homem para lhe contar o sucedido quando reparou, mal ele apareceu, que o marido trazia nos dentes alguns fios do saiote rasgado.
“Foste tu que me atacaste?”
Para espanto dela, ele disse:
“Fui eu, sim senhor. Tenho o fado de lobisomem. Se mo queres tirar tens de me picar com um aguilhão, desde que não me atinjas os olhos. Só então o meu fado chegará ao fim e descansarei de andar como um lobo a atormentar toda a gente. Em noites de lua cheia, até ao amanhecer, tenho de me despir no meio de qualquer caminho ou encruzilhada, dar cinco voltas, espojar-me no chão em lugar onde se espojou outro animal”

Assim foi feito. Na noite de lua cheia seguinte, a mulher picou-o e acabou com o fado ao marido.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

ANSIÃO


No centro de Ansião encontra-se um painel de azulejos cuja lenda circula como razão do topónimo.
Quando a vila de Ansião ainda não passava de um pequeno lugar habitado, foi visitada pela rainha D. Isabel de Aragão, esposa do rei D. Dinis. Entre a multidão que aguardava a passagem da rainha, quase esquecido junto a um muro, estava um ancião pobre a pedir esmola para sobreviver. No meio daquela gente e sozinho, como se não participasse da receção à rainha, mal se via o pobre homem. No entanto, a rainha viu-o e chamou-o para junto de si.
“Vinde até mim, pobre ancião!”
Ele levantou-se a custo e, amparado ao seu bordão, chegou-se junto da rainha através de um corredor de gente que se afastara para o deixar passar.
Ele ajoelhou-se junto daquela formosa dama, de quem o povo dizia ser milagrosa e que também tinha a fama de acudir aos pobres que encontrava. Porém, D. Isabel pediu que ele se levantasse e ajudou a ficar de pé junto a si, passando então para a mão dele uma moeda de ouro.
Depois deste gesto de caridade, a rainha virou-se para os seus acompanhantes, a maioria deles homens e mulheres da corte, e disse, apontando o mendigo:
“Esta é a terra do ancião!”
As aias repetiram o que a ama disse. E o ancião deu o nome à terra.

domingo, 19 de abril de 2015

MÊDA


Muita gente conta, testemunhas relataram, os jornais registaram e a ciência investigou, não só em Portugal como na Itália, Inglaterra e Alemanha, os estranhos ataques que acometiam Albano Beirão, o Albaninho do Aveloso, imortalizado como Homem Macaco.
Muitos dos fenómenos foram relatados em jornais da época, outros pelo próprio e muitos deles pelos populares que observaram as extraordinárias proezas, que só podiam vir de alguém que detinha um super poder, ainda que sob a influência de uma doença intrigante. Não se diz, entre todos os casos, que fizesse mal a alguém, homem, mulher ou criança.
Conta-se que  Albaninho encontrava-se certo dia na praça da  Mêda e, surgindo-lhe um ataque, ergueu um dos assentos em pedra dos bancos que se encontram junto à igreja. Como se fosse um um mero tijolo e não um pesado bloco de pedra, ergueu-o acima da cabeça e atirou com ele ao chão, partindo a pedra em duas metades.
Dois guardas-republicanos que se encontravam perto viram a atitude e alarmaram-se. Porém, como representavam a autoridade e a atitude descontrolada do homem, aproximaram-se dele quando já lhe havia passado o ataque e se encontrava calmo.
“Estás preso!”
Os agentes da autoridade eram novos no quartel e conduziram o “preso” até junto do administrador do concelho, que ao vê-los entrar com o Albaninho inquiriu:
“Os senhores não sabem quem é este homem?”
Eles encolheram os ombros.
“Ponham-se a andar para o posto, e depressa, antes que ele faça alguma coisa.”
“Nós temos armas, podemos dominá-lo!”

“Quais armas, nem meias armas! Vão-se lá embora antes que ele vos ponha de plantão com dois tabefes…”

sábado, 18 de abril de 2015

ALIJÓ


Antigamente viveram os mouros no lugar da Chã. Uma rapariga moura, muito bonita, apaixonou-se por um rapaz e, sabendo que o pai não gostava do pretendente, namoravam às escondidas. Isso não obstou a que o pai viesse a saber do namoro e proibisse a filha de continuar o idílio amoroso.
A moura, em vez de obedecer ao pai, que era o rei mouro, ainda mais comprometida ficou e acabou por casar com o jovem. Furioso, o rei tirou-lhe todos os direitos e todos os bens, expulsando-a do palácio. Visto isso, ela foi obrigada a trabalhar para sustentar a família, conjuntamente com o marido.
Também sobre ela ficou o encargo de construir a própria casa, uma vez que o pai não lhe deixou sequer um casebre para morar.
Foi então ela que carregou, à cabeça, as pesadas pedras da anta da Chã, enquanto levava o filho de meses ao colo.
Uma a uma, as pedras formaram as paredes e, uma delas, o telhado. Dispôs os colossos de pedra de maneira a albergar a família e a durar séculos a anta que lhe serviu de abrigo e lar.
Em noites de luar, no sítio das Chãs onde se encontra a anta, ainda há quem assegure ouvir os ais da moura a carregar as pedras, como se os suspiros dela tenham permanecido no local para todo o sempre.

À anta das Chãs ou Casa da Moura, o povo também atribuiu a designação de Fonte Coberta.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

ALCOBAÇA


Chamava-se Brites de Almeida, era uma mulher que nada devia à beleza e tinha seis dedos em cada mão. Mesmo assim, ainda teve quem a pretendesse, como aquele soldado que quis casar com ela. Brites prometeu que casaria com ele se fosse capaz de a vencer numa luta. O soldado aceitou, mas perdeu e, nesse combate, o rapaz esteve às portas da morte. Devido a esse incidente, Brites teve de fugir, foi presa por piratas e, regressada à pátria, exerceu a profissão de almocreve, fazendo-se passar por homem.
Depois dessa odisseia, Brites de Moura foi finalmente contratada em Aljubarrota como ajudante de padeiro.
Quando se deu a batalha de Aljubarrota, no dia 14 de Agosto de 1385, a padeira pegou em armas e combateu os castelhanos. Finda a batalha, onde se portou valorosamente como um guerreiro, verificou que os apetrechos do fabrico do pão não se encontravam onde os tinha deixado e que, contra o costume, a porta do forno encontrava-se fechada. Foi então abri-la e verificou, mesmo no escuro, que se encontravam ali escondidos sete castelhanos, daqueles que tinham fugido, tal como D. João de Castela o fizera, quando viram a sorte da batalha mal parada.

Com voz grossa deu ordens para que saíssem do seu forno e agarrou na pá de ferro com que costumava meter e tirar o pão do forno. Eles obedeceram, saindo cada um por sua vez. À medida que os apanhava fora, deu-lhes na cabeça com a pá, de modo que ainda despachou mais sete inimigos. Ela ficou conhecida como a padeira de Aljubarrota.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

CELORICO DA BEIRA



Sabe-se que durante a chamada Guerra Peninsular, que ocorreu entre o primeiro e o segundo decénio do séc. XIX, os invasores franceses não só conquistavam a terra e exerciam sobre as populações uma série de sevícias e assassínios, como praticavam atos de roubalheira e vandalismo por onde passavam.
Perante as aldeias abandonadas e perante uma propositada resistência das populações através do sistema de “terra queimada”, escondendo-se as riquezas, colheitas e outros bens dos naturais, era nos templos, igrejas e capelas, que os soldados de Napoleão davam largas à sua rapina ou à sua sanha destruidora.
Reza a lenda que os soldados franceses entraram em Maçal do Chão, espalhando o terror e fuzilando os moradores que não conseguiram ou não quiseram fugir. Não encontraram mantimentos que satisfizessem os seus suprimentos de campanha, pois os habitantes levaram ou destruíram o que semearam para não deixarem aos invasores qualquer meio para subsistirem.
Assim, como era seu hábito, procuraram encontrar alguns valores em ouro ou mesmo objetos que pudessem trocar por dinheiro, na igreja matriz. Não se sabe o que levaram, mas não terão esquecido a forma como vinham praticando desde que passaram a fronteira: tudo o que não lhes interessava, queimavam.

Preparavam-se então para deitar o fogo à igreja matriz, já com os archotes acesos e os rastilhos de pólvora espalhados para se propagar com maior violência o incêndio, quando os dos militares reparou que num dos altares estava um santo para eles especial e de grande devoção em França: S. Luís, que foi rei de França como Luís IX, cuja vida piedosa e a sua participação nas Cruzadas o levaram ao santificado. Perante esta imagem do santo, deixaram a igreja intacta.

terça-feira, 14 de abril de 2015

ALCÁCER DO SAL



A antiga Salácia, que hoje se chama Alcácer do Sal, foi conquistada aos mouros pelo rei D. Afonso II. Fugidos os vencidos, para trás deixaram Almira, uma criança que com o passar dos anos se transformou numa bela jovem. Depressa todos os moços cristãos por ela se apaixonaram.
Num dos parapeitos do castelo costumava ela passar longos períodos de tempo nos meses de Agosto e Setembro, a suspirar, pensando nos seus.
Certo cavaleiro cristão, um os que se tinha apaixonado por ela, decidiu escalar a muralha numa das alturas em que Almira se sentava nas sua meditações e saudades. Para ele só existia Almira.
Gonçalo, tal era o nome do cavaleiro, subiu a pulso aquela dura muralha de granito, aproveitando a face que se encontrava na penumbra.
Quando a lua nasceu, já estava ele ao lado dela, tão inesperado e veemente na abordagem que quase precipitou Almira das muralhas, tal o susto que apanhou. Ele sossegou-a e ajoelhou diante dela, baixando a cabeça em sinal de respeito e paz. Ainda ofegante pela escalada, declarou ele o seu amor perante uma atónita moura, ainda incapaz de reagir.
À luz da lua, ela reparou no rosto do apaixonado e ficou bem impressionada com aquele atrevido cavaleiro cristão, que arriscara a vida para se declarar. Estendeu os braços na direcção dele e recebeu a cabeça do jovem no seu regaço, cobrindo-a com os cabelos libertos do turbante.

Nas noites luarentas, ainda hoje o povo diz ouvir os murmúrios de Almira e de Gonçalo.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

SEIA



Nas margens do rio Alva, no Sabugueiro, em plena Serra da Estrela, passava um rapaz com o seu cão por um sítio quando lhe chamou a atenção o que se encontrava sobre um penedo. Eram uns poucos de figos que ali estavam espalhados ao sol e já se encontravam secos.
Nem de propósito! Ela estava em jejum e aqueles figos vinham mesmo a calhar para acomodar o estômago, que já estava a pedir satisfações.
O rapaz ia a lançar-lhes a mão quando uma voz, vinda do interior do penedo – que devia ser a porta de alguma gruta – o advertiu:
“Eia, lá! Deixa os figos!”
O rapaz já tinha um figo na mão, mas largou-o logo.
“E quem é que me proíbe?”
“Dou-te os figos”, retorquiu a voz, “se me deres o cão ou os safões de pastor que trazes a tapar as pernas.”
O cão deu uns latidos como se compreendesse o pedido e o destino que lhe reservaria se fosse ele o escolhido.
O rapaz, recuou uns passos e respondeu à voz:
“Não dou uma coisa nem outra!”
A voz era de mulher, mas não se deixava ver quem proferia as palavras. Até podia ser algum monstro, um mero salteador dos caminhos ou, na melhor das hipóteses, um nostálgico desdenhoso que quisesse mangar com ele.
O estômago que esperasse um pouco mais, pois aqueles figos podiam trazer alguma coisa ruim. E deitou a fugir daquela assombração. O cão, sem deixar de ladrar, ainda corria mais.
Ao olhar para trás, enquanto dava às pernas, viu uma mulher bonita que lhe pedia um beijo:
“Não vás, meu lindo, não vás!”

Ela tinha o corpo dividido em duas metades que se juntavam num burlesco conjunto: metade era humana e a outra metade, da cintura para baixo, era de cobra.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

AGUIAR DA BEIRA


A serra do Picoto, como filha da serra da Lapa, é áspera e nua como estopa de linho no sítio em que as rochas se estendem pelos cumes, encabritados uns sobre os outros. Quando as neves e os sincelos se derretem nos fraguedos descarnados de vegetação, os raios de sol fazem nas rochas o cintilar da prata e do ouro.
Uma ala do exército francês, que invadira Portugal, correndo em direcção a Viseu, sob o comando de um oficial de Massena, passou por Gradiz e subiu a Monções, chegando os soldados a esta povoação empinada muito esfalfadinhos da subida a mata-cavalos e mais encharcados em suor do que trapos de cozinha.
Ora, essa subida é puxada e, apesar da belíssima paisagem abundante e luxuriosa, para quem não vai propriamente para a contemplar, é obra. Para aqueles chanfrados que a subiam com mochila, farda, arma, munições e outros apetrechos bélicos, sobrava-lhes o trabalho de pernas.
Ninguém os recebeu em Monções, nem de braços abertos nem com eles fechados. Não encontraram os invasores vivalma que lhes pudesse valer com uma sede de água, ou em quem se pudessem vingar por tanto sacrifício baldado de rapina. Deram em vasculhar casa por casa à cata de comida e bebida, mas a única coisa com que se regalaram foi darem azo a partir todo o caco que vissem inteiro. O povinho tinha recebido intimação para abandonar a aldeia e não deixar para trás migalha que tapasse a cova de um dente dos francesinhos.
Arrombaram a porta da capela e, achando a imagem de Santo António, erecto nas suas vestes de franciscano e com a calva monástica a luzir, propuseram levá-la com eles, pois era a única coisa de valor que encontravam naquela desolação.
O soldado que retirou a imagem estava a escondê-la, mas o oficial, que era cobiçoso, deu-lhe uma ordem:
“O santo é meu, soldado. Como não há saque nesta aldeia, esse é o único bem que levo daqui”.

Ao retomarem a marcha, despertou-lhes a atenção umas cintilações que ofereciam as lajes escorregadias da serra, porque tinha chovido na véspera e os calhaus reflectiam os múltiplos regos de água como se fossem espelhos.
Conta a lenda que, amedrontados, julgando-se tratar do exército anglo-luso, largaram a imagem do santo e deitaram a correr pela serra da Lapa como se fossem perseguidos pelo próprio Demo.
O que subsiste da lenda é a confusão dos militares: tomaram as cintilações pelo luzir frio do gume das baionetas e não esperaram pela confirmação, dando às pernas na fuga como se elas não tivessem na conta algumas léguas de subida.
Diz o povo que nesse sítio estão sete fontes que brotam, cada uma, sete fios de água.

TEXTO E GRAVURA: SANTOS COSTA


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

MÊDA



Dizem que no castelo de Longroiva viveu um valente fidalgo de nome D. Ramiro Alvar. Era um homem alto, bem constituído, bonito e bondoso, como não havia outro igual pelos castelos da região. Era solteiro e, chegado aos trinta anos, ainda não tinha pensado em contrair matrimónio.
Passado algum tempo, vindo D. Ramiro Alvar da caça ao porco-montês, viu o seu cavalo estacar repentinamente. Uma rapariga tinha saltado detrás de uma sebe e alvoroçara-se com o aparecimento da montada e do cavaleiro. O receio fez com que caísse ao chão, bem diante das patas do cavalo. D. Ramiro saltou para o chão e foi auxiliar a jovem. Segurou-a suave mas firmemente pela cintura. Ela não se atrevia a abrir os olhos, tomada de pânico, mas os dele estavam abertos de espanto: a jovem era uma bonita criatura; nunca tinha visto nos seus trinta anos de vida mulher com tanta beleza!
Não mais esqueceu D. Ramiro aquela bonita rapariga, a qual se chamava Rosa. Apaixona-se por ela e acaba por se casar, realizando-se uma boda memorável em terras de Longroiva e arredores.
Dois anos depois deste casamento, respondeu D. Ramiro ao apelo da guerra. Aí conheceu outro valente guerreiro como ele, que se chamava D. Gonçalo. No mais aceso da luta, D. Gonçalo caiu aos golpes dos inimigos e D. Ramiro foi em seu socorro, não permitindo que despedaçassem o corpo do infeliz companheiro.
Ferido e a necessitar tratamentos e cuidados, D. Ramiro ofereceu o seu castelo de Longroiva para D. Gonçalo repousar e ser convenientemente tratado, enquanto ele permaneceu no combate.
Ora, passado algum tempo, D. Gonçalo estava curado das feridas e fez acreditar à jovem esposa de D. Ramiro que o seu marido tinha sido morto na guerra. A notícia teve o efeito de um raio que trespassasse o corpo de Rosa. A jovem, sentindo-se viúva, fechou-se em pranto durante dias, permanecendo em luto pesado durante um ano, findo o qual acedeu aos desejos de D. Gonçalo para que o desposasse, mais dizendo o impostor, em memória de D. Ramiro, que assim o desejou antes de morrer.
Tinham acabado as cerimónias, eis que é regressado a casa D. Ramiro Alvar. Sabendo da notícia pelos seus criados e de todos sabendo as artimanhas que levaram D. Gonçalo a receber sua mulher por esposa, D. Ramiro entrou em casa e, vendo o usurpador com Rosa, desafiou-o para um duelo. Logo ali as espadas se cruzaram numa luta de morte e a lâmina de D.
Ramiro trespassou o peito de D. Gonçalo, que tombou aos seus pés. Rosa, que a toda a luta assistiu, arrojou-se aos pés do marido.
“Fazei com que essa lâmina atravesse o meu peito”, clamou ela, em pranto.
“Não o farei, pois que todos me contaram como Gonçalo vos enganou com a notícia da minha falsa morte.”
“Culpada sou por acreditar e não vos ser fiel até morrer! Mil vezes vos pedirei para me matardes; se não o fizerdes, mil vezes me arrojarei diante de vós ou diante de quem o queira fazer.”
“Perdoo-vos, Rosa. E desde já vos garanto que não responderei a esse vosso desejo, nem permitirei que homem algum o faça por mim.”
“Manterei em segredo o amor que vos tenho e soltarei noite e dia o pranto do meu arrependimento. Recuso, pois, o vosso perdão.”
Dito aquilo saiu de casa, montou a cavalo e afastou-se do castelo de Longroiva. Não olhou para trás. Mesmo que o fizesse, os seus olhos inundados de lágrimas, não deixariam ver a felicidade que deixava fugir em cada solavanco do galope da montada.

Refugiou-se na sua velha cabana do bosque. Dizem que ainda hoje, quando alguém atravessa o bosque e se aproxima da cabana, consegue ouvir o pranto da desconsolada Rosa, como hino amargo da penitência que não era merecida.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO




Certo pastor do Colmeal, que pastava o seu rebanho na Serra da Marofa, sonhou que devia ir a Belém, onde encontraria o que necessitava. E ele foi. Não se sabe como, mas foi. Lá chegado, encontrou alguém que com ele meteu conversa e lhe disse, depois de alguma conversa à sobreposse, que também tinha sonhado sobre um tal Colmeal das Rolas; e mais: a ir lá, encontraria um chibo deitado sobre uma pedra e, por baixo dela, uma cabra com o seu cabritinho, ambos de ouro maciço.
Para apimentar a descrição, o estranho concluiu:
“À noite, as barbas do chibo transformam-se também em ouro!”
O pastor regressou à sua terra e quis verificar a veracidade da descrição do homem de Belém. Parecia-lhe impossível encontrar o que o outro descreveu, mas encontrou. Lá estava o chibo sentado, que ele de imediato afastou para retirar a pedra. Sob esta, a cabra e o cabritinho que luziam dourados aos raios do sol.
Como se tratava de um homem honrado, resolveu entregar o achado ao rei.
“Real majestade”, começou ele, “queria oferecer-vos uma cabra e um cabrito…”
O rei ficou agastado com a oferta, pois a sua despensa crescia diariamente com ofertas daquelas. E disse:
“Quero então o cabritinho, por ser mais tenro.”
O pastor abriu o saco e retirou o cabritinho de ouro, que entregou a um rei completamente embasbacado e arrependido por não ter aceitado a oferta no seu todo. Emendou ainda:
“Olha, palavra de rei não volta atrás, mas peço-te que da cabra me deixes um chifre, para fazer uma bengala. E, já agora, também te faço um pedido: quando chegares à tua terra, junge uma junta de bois e do nascer ao por do sol, todo o terreno que fores capaz de marcar com um arado, será teu.”
O homem assim fez. Assim nasceu a Quinta do Colmeal.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

MÊDA


O convento de Vilares ou de Nossa Senhora dos Remédios foi construído em 1447, a cerca de meia légua para ocidente da vila de Marialva e entre esta e Valflor. Era o convento destinado a frades franciscanos de ordem terceira e tinha por devoção precisamente Nossa Senhora dos Remédios.
Naquele convento chegaram a estar cerca de trinta religiosos, ajudando os párocos a confessar e a pregar. Viviam de esmolas.
Extinto o convento, logo se tratou do confisco dos bens patrimoniais, tanto religiosos como artísticos, sendo tresmalhados pelas mais poderosas famílias de Marialva, Carvalhal e Valflor.
Foi numa dessas distribuições que aconteceu a imagem de Nossa Senhora ter sido separada do Menino que se encontrava nos seus braços. Os de Marialva, principalmente as mulheres, queriam recuperar a imagem do Menino, uma vez que na posse deles já se encontrava a da Mãe.
Diziam algumas mulheres:
“É uma esmola e uma bênção ir tirá-lo da igreja de Valflor.”
Vai daí, teceram uma estratégia. Para isso, esperaram um dia festa com procissão em Valflor, altura em que a igreja ficaria vazia.
Três homens de Marialva entraram na igreja sem que fossem vistos e, pé ante pé, cumpriram a sua missão à risca, retirando a pequena imagem e dissimulando-a entre um pano da sacristia. Depois de assim embrulhado, com a mesma pressa e igual desfaçatez, saíram da igreja de Valflor, agora na saída com menos cautelas do que tiveram à entrada.
Talvez por isso, alguém os viu tão furtivos e deu o alarme, juntando-se meia dúzia de homens que lhes tolheram os passos.
Um deles perguntou para o que levava o embrulho:
“ O que levais debaixo do braço?”
O interpelado apenas hesitou alguns segundos e respondeu:
“É um cabritinho para o senhor padre!”
Os de Valflor encolheram os ombros. Podiam querer ver a oferta, mas isso podia ser considerado uma desfeita que faziam ao sacerdote, e abriram alas para os de Marialva prosseguirem caminho, o que estes fizeram a sete pés.
Quando os de Valflor deram conta da falta, desconfiaram de quem tinha sido a proeza, mas os de Marialva mantiveram o Menino escondido durante algum tempo até serenarem os ânimos.


segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

TRANCOSO


Enquanto as gentes do povo passavam pela rua da amargura para conseguirem o pão com que matavam a fome, uma moura que assistia nos barrocos próximos do Feital dava-se ao desplante de assoalhar um riquíssimo bragal e cobiçado tesouro nas madrugadas dos dias de São João e de São Pedro. Armava o estendal ao relento, com arcas de joias, sacos cheios de dinheiro, ouros, pratas e pedras preciosas.
A moura desvanecia com o seu tesouro posto à luz da manhã, desdobrando lindas toalhas bordadas a ouro com dedal de prata. E não se sabe quantas coisas mais de valor guardaria ainda nas grutas inexploradas onde passava o seu encantamento.
Calhou certa vez a passar por ali uma mulher na companhia de uma filha pequena e a ver tão cobiçada fartura de riqueza. Em quebranto ficaram mãe e filha, mais a primeira do que a segunda.
O certo, certo é que ficaram ambas ofuscadas com o esplendor das maravilhas. Só uma mão cheia daquelas peças dava para esbanjar à larga e gozar toda uma vida repimpada de papinho para o ar.
A estranha deixou tempo à mãe e à filha para se fortalecerem com a surpresa e mais com a cobiça. Com gestos amigáveis, a moura ofereceu à mulher a liberdade de levar consigo o que lhe aprouvesse, desde que o fizesse de uma vez só. Esta, sem hesitar, com olhos piscos de tanta vesânia e cobiça, berrou para a filha:
— Ó rapariga, vai-me de um pulo a casa por via de trazeres a saca maior que lá vires.
Um pulo era um modo de falar, mas a criança não demorou a trazer o saco mais avantajado que encontrou. Mais depressa do que era preciso, ambas trataram de o encher indiscriminadamente com peças valiosas, enquanto a moura, que não ficava mais pobre por isso, seguia os gestos precipitados da ganância.
— Mexe-me essas mãos, minha aranha, avia-te! — incitava a mãe, recolhendo em dobro nas manápulas o que em metade cabia nas da filha. — Mal parecerá se não aceitarmos isto tudo que esta boa alma nos oferece.
Vendo a moura que a mulher estava com vontade de encher outro saco, perguntou-lhe se estava com vontade de gastar toda aquela fortuna durante a sua vida.
Toda rapioqueira, a fulana disse que sim e mais que também, acrescentando: com a graça de Deus.
— Então, se é isso, dou-te apenas três anos de vida para gastares tudo o que levas.
A mulher fez-se branca como o véu dos anjos. Por momentos ficara imóvel e, depois de uma pequena hesitação dolorosa, tomou uma decisão. Salamurda, tratou em virar o saco de fundo para o ar e despejou o seu conteúdo.
— Se ele é isso, fique-se vossemecê com as quinquilharias, que eu fico com os meus anos de vida. E passe muito bem.

Sem querer mais saber do tesouro, voltou para casa com a filha, disposta a viver os anos que Deus entendesse ser servido, ainda que pobre como era.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

SABUGAL



Um rapaz de Sortelha, que todos conheciam como Zé do Feijão, encontrou por acaso um falcão perdido e apanhou-o. Pouco depois, ficou a saber que esse falcão pertencia a um fidalgo que andara à caça e perdera a ave.
O fidalgo oferecia grossa recompensa a quem lhe apresentasse o falcão, vivo; em contrapartida prometia castigo severo a quem tivesse morto a ave.
O Zé do Feijão, perante aquela proposta, pensou nas palavras do seu pai no leito de morte. Tinha o moribundo aconselhado o filho desta maneira:
“Se tiveres um segredo, que não queiras ver espalhado pelo vento que soa, não o contes a ninguém. Nem a tua mulher, nem ao teu maior amigo. Não o contes, seja a quem for. Guarda-o, porque um verdadeiro segredo guarda-se no coração.”
Era, pois, chegada a hora de saber se aquela recomendação do pai tinha algum valor, pois até aí não lhe tinha encontrado qualquer préstimo.
O que pensou e fez ele, então?
Guardou o falcão num sítio onde ninguém o visse e convidou um dos seus melhores amigos para jantar com ele.
“Vamos comer carne de falcão”, disse ele quando apresentou, como ementa, o conteúdo que pôs na mesa.
O amigo quase saltou na cadeira:
“E onde foste tu arranjar o falcão, Zé?”
Ele então narrou com muitos pormenores como tinha apanhado o falcão, ainda vivo, pois o encontrara cansado e com fome para se deixar apanhar. Disse ainda que a ave era boa para uma refeição, pois mais falta lhe fazia a ele do que ao fidalgo. E acrescentou que era boa ocasião para compartilhar aquele pitéu com o seu melhor amigo.
Para conseguir pôr à prova o ditado, o Zé do Feijão, baixou a voz, colocou o dedo indicador à frente dos lábios e recomendou ao amigo:
“Tem cuidado e não fales disto a ninguém.”
Com aquele segredo a pesar-lhe na consciência, o amigo do Zé passou a andar cabisbaixo e taciturno, sem saber o que fazer: se calasse o que sabia, não mais sossegaria a consciência; se desse à língua, condenaria o amigo e a sua consciência também não o deixaria de atormentar.
Até que arranjou uma solução, de forma a divulgar sem divulgar. Chegou-se à beira de umas canas à beira rio e em voz baixa desabafou:
“Foi o Zé do Feijão que matou o falcão.”
Aliviado e descomprometido, o amigo foi à vida dele, sem agora ter qualquer peso na consciência a atormenta-lo. E assim seria, se não fosse o caso de um pastor, que guardava as suas ovelhas à beira do rio, ter arrancado uma cana para fazer uma flauta e assim passar o tempo a tocar nela.
Quando começou a soprar para uma melodia em voga, em vez dos sons musicais saiu uma frase que ali parecia estar guardada:
“Foi o Zé do Feijão que matou o falcão”.
Com esta acusação, depressa o fidalgo enviou os seus homens a casa do Zé do Feijão para lhe fazer pagar caro – talvez com a vida – a morte da sua ave de caça. Levado à presença do senhor de Sortelha para receber a sentença fatal, o Zé do Feijão disse que a ave estava em sua casa, bem guardada e alimentada, prontinha a ser devolvida ao seu dono. E assim fez.
Satisfeito, o fidalgo cumpriu o que tinha prometido: gratificou generosamente o rapaz que lhe apresentou a ave, sã e escorreita, sem um único arranhão ou prova de maus tratos.
Satisfeito, igualmente, o Zé do Feijão, pois via cumprido o judicioso conselho de seu defunto pai, pois o vento que soa pode levar para longe os segredos que se querem ocultar.