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quarta-feira, 24 de julho de 2013

A MERENDA (TRANCOSO)



Seguia, certa vez, uma mulher com uma cestinha de comida, por via de levar o jantar ao marido que andava a trabalhar de jorna. Era o tipo de mulher atrigada à lida, com o seu palminho de rosto que não destoava do seu andar ligeiro. Seguia, pois, no maior sossego deste mundo, tape, tape, quando de repente lhe saiu ao caminho uma mulher de uma beleza deslumbrante, toda vestida de rendas e oiro a granel. Trazia o corpo — vejam lá o despreparo — quase ao léu!
A mulher ficou queda, sem saber de onde tinha saído aquela criatura, quando uma ideia lhe veio à cabeça: é moira!
Sim, à primeira impressão, aquela mulher, lúcida e de ares finos, que exalava um rescendor a mirra e cânfora, possuía todos os encantos da mouras dos penedos.
A mulherzinha ia a esboçar um sinal da cruz quando a moura, que realmente o era, indicou com um aceno de cabeça o cesto da comida e pediu com o maior dos descaros:
 — Dás-me da tua merenda?
O seu tanto confusa, a mulher balbuciou:
— Dou, sim.
A moura deitou-se à comida e ficou contente por topar na cesta mais que pão e água. E cometeu a deselegância de deitar os alvos dentes a tudo o que vinha à mão, sem o menor rebuço, quase deixando o pobre do trabalhador sem côdea para cheirar.
Depois de passar ao estreito uma fatia de broa e as duas últimas azeitonas de cântaro, a moira falou desta guisa:
— Em paga do que me deste, toma lá estes cinco carvões. Não os descubras, a não ser em casa.
A mulher recebeu os cinco carvões como se eles fossem as cinco chagas de Jesus Cristo. Esteve, isso sim, vai-não-vai, para mandar a infiel à outra banda. Não eram modos de se dar graças sobre o açafate: carvões era lá coisa com que se pagasse?! Ainda por cima, sua senhoria, a descarada, media-a de cima ao fundo com um sorriso maroto nos lábios e a exibir umas mãos alvas de quem nunca conheceu o trabalho. A mulher renhiu as unhas e dentes, mas entretanto a moura tinha-se despedido sem dizer por aqui me vou.
Ficou-se a pobre da mulher a olhar a cesta e o jantar minguado, ao mesmo tempo que torcia o nariz aos cinco carvões que mal davam para assar dois rabos de sardinha. Posto isto, com um resmungo de maldição, deitou fora quatro dos cinco carvões; o outro lá ficou entre um naco de broa e a panela da sopa.
Fez o que tinha a fazer. Mal contentou o estômago do homem que se pôs a resmungar no vácuo e a chamar-se mil vezes tolo por ter casado com uma mulher aérea de siso. Quando regressou a casa, ia a deitar os tarecos  para a pia da água, notou que no fundo do cesto estava uma pepita de oiro. Que regalo ver aquilo a cintilar! Era mesmo oiro de lei, Santo Deus!
Prevaleceu a mordedura da cobiça e com as pressas da mesma voltou ao lugar onde tinha aventado com as outras quatro pedras negras. Mas, em lugar de as encontrar, deu com a moura de cenho franzido e com cara de que lhe deviam e não lhe pagavam.
— Que vieste aqui fazer?— perguntou a moura.
Boa pergunta! Ela estava disposta a dar o sangue dos braços pelos quatro carvões!
— Vinha buscar o que aqui deixei...
— Malandra, é o que tu és! Deste cabo da tua riqueza e dobraste o meu encanto!
Dita a matéria dos autos, desapareceu num aceniscar de olhos, enquanto a mulher se ficou a rilhar os dentes e a acusar a sua má sorte.


terça-feira, 16 de julho de 2013

A SENHORA DAS NEVES (ALMEIDA)


Almeida,26 de agosto de 1862.
Os soldados franceses do exército de Napoleão tinham posto cerco a esta praça fronteiriça, dispostos a passarem aquele obstáculo que os impedia de penetrar em Portugal.
Um dos generais falava assim para os seus oficiais imediatos:
“Dizem que esta fortaleza foi construída para resistir a qualquer Exército e os seus canhões, não é assim ?”
Eles assentiram com a cabeça e ele continuou:
“Pois seja ! Vamos bombardear o centro da praça.”
Respondeu um dos seus interlocutores:
“Está tudo a postos, general !”
“Será difícil entrarmos ali através da rendição, general – disse um dos oficiais –, uma vez que não se entregarão.”
“A não ser que o canhoneio abra brechas nas muralhas – contrariou o general - Dê ordens de fogo.”
Canhões de grande calibre tinham sido colocados em ponto estratégico.
“Fogo !”
Às primeiras granadas, os franceses ouviam violentas explosões na vila de Almeida.
O general francês soltou uma exclamação de vitória:
“Ração redobrada para o artilheiro. Acertou em cheio no paiol da pólvora !”
Na vila, o povo andava de um lado para o outro.

 
“Acudam ! Acudam à nossa igreja matriz ! Salvem a imagem de Nossa Senhora das Neves !”
“Água ! Água !”
“Não há água que chegue para este fogo !”
De súbito, uns flocos brancos começaram a cair sobre as cabeças dos resistentes.
“Mas… Está a nevar ?!”
“Este nevão vai apagar o incêndio na nossa igreja.”
Todos se interrogavam. Estava um calor de verão, em pleno Agosto e…
“Como é que é isto possível ? Está a nevar no mês de agosto !
“É milagre !”
Um nevão cobria as muralhas de Almeida e apagava o incêndio na igreja matriz. Dos escombros calcinados, agora cobertos de neve, era retirada a imagem da Senhora das Neves, intacta.
Na robusta fortaleza de Almeida celebra-se todos os anos, em Agosto, a festa de Nossa Senhora das Neves.


terça-feira, 9 de julho de 2013

O BEIJO ETERNO (SORTELHA)



Uma águia voa sobre uma das mais belas fortalezas de Portugal: Sortelha. Daquele ponto, nas alturas, a águia domina o horizonte, o castelo e povoado.
Mas só à humana vista se depara um curioso conjunto de duas rochas, que se designam como “beijo eterno”.
É em sortelha que se encontra a explicação para esse nome, numa lenda que remonta ao tempo da reconquista cristã.
Conta-se que, certa noite, uma hoste de mouros cercou a fortaleza de Sortelha, para recuperar aquele sítio estratégico. No castelo, encontravam-se o alcaide, que resistia com os seus homens de armas, a mulher do alcaide, que diziam ser feiticeira, bem como uma filha, donzela formosa, que não queria saber nada de feitiços nem de guerras.
O cerco já durava há muito tempo e a jovem passeava o seu tédio entre muralhas. No seu quarto apenas tinha a companhia de um gato. Para se distrair, ia até à varanda, nas muralhas, pois dali via os sitiantes.
Um dia, despertou-lhe a atenção certo cavaleiro. Era ele o jovem comandante das tropas mouras. Fazia-se notar o jovem guerreiro pelo seu porte nobre, altivo e belo.
“Que lindo homem !”, exclamou ela, seguindo-o com os olhos enquanto ele fazia caracolear o cavalo.
Se ela o viu, ele também a viu a ela. A beleza da jovem cristã deixou o chefe mouro prendido na sua contemplação.
“Que Linda Mulher !”, pensou ele, levantando a cabeça para descortinar o rosto feminino no alto das muralhas.
A partir daquele momento, nem um nem o outro deixaram de pensar em encontrar-se, ainda que fosse uma só vez na vida. O chefe mouro conseguiu que alguns dos seus homens conseguissem fazer subir pelas muralhas, em cestos, as mensagens e oferendas que, às ocultas dos guardas do castelo, fazia chegar às mãos da sua amada. E esta, por sua vez, àquela mesma hora do crepúsculo, lá estava para as receber e, por sua vez, remeter para ele objectos que não o fizessem esquecer de quanto o amava.
Tudo decorreu sem incidentes. O certo, porém, é que os dois amantes não o podiam ser apenas à distância; nem podiam estar eternamente separados pela fronteira que dividia os cristãos cercados e os mouros que os cercavam. Por isso, o chefe mouro prometeu a liberdade a um prisioneiro cristão, dando-lhe uma recheada bolsa com moedas de ouro, com as condições que ele impôs:
“Falarás a sós com a donzela e abrir-lhe-ás a porta.”
O soldado assim fez e ela, aproveitando a escuridão, saiu do castelo.
Mas a mãe da jovem, que andava a vigiar o namoro da filha com o guerreiro, apercebeu-se que alguma coisa se passava nessa noite e levantou-se. Confirmou as suas suspeitas. Os amantes estavam junto às muralhas e beijavam-se.
“Malditos ! Eu vos amaldiçoo e vos transformo em pedra !”
Gritou uma algaraviada de feitiços e os dois, conforme estavam abraçados, lábios com lábios, ficaram petrificados. E assim permaneceram, para sempre. Quem os quiser ver, terá de ir a Sortelha e perguntar pelas rochas do Beijo Eterno.