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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

GOUVEIA - A QUEDA DO PÚCARO (111)


Na Nespereira, concelho de Gouveia, situada na vertente norte da Serra da Estrela, existe a Quinta do Paço. Pertencente à dita quinta, existe uma capela de invocação da Senhora da Encarnação, onde se diz estar sepultado um nobre do tempo de D. João II, que foi combatente deste monarca.
Quando o cognominado Príncipe Perfeito visitou a Nespereira, no ido século XV, foi recebido pelo seu importante e dedicado súbdito na Quinta do Paço, possivelmente assim chamada porque foi, durante breve visita, o paço real.
O rei terá gozado das delícias da boa mesa e de boa cama e partilhado com o anfitrião o exercício da caça por aqueles montes e vales serranos. Como não podia deixar de ser, toda a comitiva real teve, se não o mesmo, idêntico privilégio.
Dotado de alma paciente, prenda com que se bafejavam os senhores da Beira, o anfitrião fez das tripas coração para proporcionar aos convidados, mormente a el-rei, todos os desvelos que alguns nem sequer mereciam. Lá diz o povo, na sua sabedoria ancestral: “por causa dos santos beijam-se as pedras”.
A contas com tal fidalguia, que não era pouca, o nobre da Nespereira deu grande desbaste na despensa e maior rombo no nível dos tonéis, pois é sabido que gentes da cidade e da corte, apanhando-se nestas terras, tratam de enfardar como se não comessem há um ano, tudo à barba-longa.
Ora, conta-se que depois de renhida caçada ao porco-montês, que levou el-rei a cavalgar por serros e vales, matos e courelas, com as nádegas bem doridas de tanto solavanco na sela, este regressou ao solar da quinta a suar em bica e sedento.
Fez saber ao nobre anfitrião que tinha sede.
“Mandai trazer-me um púcaro de água fresca”, pediu o rei, sabendo que esse pedido era logo tomado como uma ordem.
“Não quereis antes um jarro de vinho, majestade?”
“Água fria lava e cria. Se ma trouxerem da nascente, que venha em bilha de barro.”
“Pois seja como quereis.”
 E o nobre, com todo o respeito por sua real majestade, mandou vir por um dos seus criados um púcaro de barro com água fresca, que ele próprio fez tenção de entregar ao soberano. Porém, como estava muito nervoso perante tão importante hóspede, quando ia a entregar o púcaro nas mãos do rei, deixou-o cair.
“Perdoai, real majestade, que as mãos me tremem como se estivessem engaranhadas com o frio.”
O rei sorriu perante tanta atrapalhação e, com um gesto de mãos, acalmou o fidalgo.
Porém, toda a comitiva do rei desatou a rir perante o incidente, pois se tinha apercebido da atrapalhação do fidalgo da quinta. Até os escudeiros e criados daquela chusma da corte, gargalharam estrondosamente perante o banal incidente.
Sem demonstrar qualquer animosidade, antes demonstrando perspicaz discernimento, o rei nem sequer sorriu; pelo contrário, afivelando no rosto um ar carrancudo e grave, encarou os súbditos e fez estancar subitamente a copiosa galhofa.
“De que vos ris, senhores?”
Como ninguém ousasse abrir o bico, porquanto a resposta era evidente e podia ser tomada por ofensa, o monarca voltou-se para todo o grupo dos da risota para lhes deixar, à guisa de admoestação, esta sua leitura do acontecimento:
“Saibam todos os da mofa, que este nobre cavaleiro, que agora deixou cair o púcaro perante o seu rei, ao seu serviço e nas guerras do norte de África nunca deixou cair a espada.”
Voltou-se para o nobre da Nespereira e inquiriu:
“É verdade o que estou a dizer, ou não?”
O anfitrião baixou a cabeça em gesto humilde e confirmou:
“Ao vosso serviço, majestade, a força dos meus braços rejuvenesceu e multiplicou-se ao dobro do seu esforço. E mais teria feito, junto a vós, se tal pudesse ser ainda hoje.”
Voltou-se o rei para os da sua corte:
“Aí vedes quanta mágoa me causa o vosso riso zombeteiro perante um deslize tão insignificante, quando eu sei, que de entre vós, se não deixásseis cair o púcaro, talvez não vos fosse tão favorável erguer uma espada perante o inimigo e mantê-la na mão durante o confronto. Assim, qual será de mais valor: suster um púcaro de água em tempo de paz ou erguer uma espada em solo de guerra?”
Nem será necessário dizer que todos os presentes receberam o sermão com a cabeça inclinada para o peito. Não se ouvia um sussurro, não se vislumbrava um movimento, como se todos estivessem vergados por um anátema.
Quando de novo trouxeram outro púcaro de barro, o nobre da Nespereira teve a oportunidade de o entregar nas mãos de el-rei, colocando um joelho em terra. E o rei bebeu com plena satisfação, lançando ao solo, como era costume, a água que sobejou.
Os risos cessaram, até porque, de entre aqueles que riram, estariam muitos que se temeram de lutar e que, nas horas de refrega, desandaram para sítio mais seguro.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

ALJUSTREL - O TOURO DA MESSEJANA (16)


O castelo de Messejana localiza-se no monte do mesmo nome, que faz parte do concelho de Aljustrel. O topónimo “messejana” deriva da palavra árabe "masjana", com o significado de prisão.
Prisão ou não, a Messejana não deixa de ser um lugar alentejano habitado, principalmente depois de reconquistado aos mouros por Dom Sancho II em 1235, que até mereceu o título de concelho, dado pelo rei Dom Dinis, cujo foi desfeito em 24 de Outubro de 1855, pelo Ministro do Reino Rodrigo da Fonseca. Dom Dinis mandou restaurar o seu castelo em 1288 e doou a vila à Ordem Militar de Santiago da Espada. O rei Dom João III doou a Messejana a Dom João da Silva, Senhor de Vagosque a fez transmitir ao seu filho Dom Lourenço da Silva, que reconstruiu o convento para frades franciscanos e a Igreja da Misericórdia.
O rei Dom Sebastião visitou este donatário na Messejana e convenceu-o a ir combater no Norte de África, o que lhe seria fatal cinco anos depois dessa visita.
Para que se não julgue ser terra de pouca importância, mormente religiosa, a Messejana chegou a ter 11 igrejas três capelas particulares.
Deixemos a História e o tal Rodrigo da Fonseca que não respeitou a decisão real, para irmos à Lenda.
Nessa terra e em tempos muito idos, estava uma mulher a lavar a roupa quando ouviu um silvo. Voltou-se e viu uma rapariga em que o corpo se dividia em duas partes: normal da cintura para cima; tal e qual uma cobra da cintura para baixo.
Esta mulher-serpente, que se deslocava como as cobras, rastejando e mostrando com frequência uma língua comprida e bífida, disse-lhe então que era filha do alcaide do castelo de Messejana e estava encantada. Informou-a que o pai tinha sido primeiramente encantado como touro, tendo ela acompanhado o animal até ela própria sofrer aquela metamorfose. E pediu-lhe para a desencantar:
“ Para me desencantares deves ir, sem medo, limpar a baba a um touro que de ti se aproximará, pois este touro é o meu pai, que também se encontra encantado. Se tiveres medo, dobrarás o nosso encanto.”
A mulher não interrompeu e teve receio de procurar saber mais pormenores.
“Entendeste o que te peço?”
A mulher não conseguiu abrir a boca e respondeu afirmativamente com um aceno de cabeça.
“Então faz como te disse.”
Limpar a baba a um touro, se bem que não era asseio que lhe agradasse, não era pior do que se chegar junto ao touro para essa limpeza. Um touro sempre é um touro, que lhe importava que fosse o pai daquela criatura? Seria mais fácil darem-lhe a incumbência de limpar o ranho à mulher-cobra.
No dia seguinte, encontrando-se a mulher novamente a lavar a roupa, aguardou que alguma coisa acontecesse, principalmente a vinda do tal touro que dela se aproximaria para limpar as beiças.
Efectivamente dela se aproximou um touro, escarvando o chão com as patas dianteiras, bufando e babando-se. Deu duas voltas, sempre com ar fero e sanguíneo, parando de vez em quando para escarvar o chão, baixar a cabeça e as hastes e resfolegar de modo a fazer levantar a terra do chão.
“Como é que queres que te limpe a baba, se me estás a ameaçar?”
Uma voz vinda de algures, que a mulher não conseguiu identificar, avisou:
“Faz o que tens a fazer.”
A mulher temeu-se e esqueceu as recomendações recebidas da mulher serpente no dia anterior. Podia correr risco de vida, para mais com o temor de ir bailar presa por uma ou ambas as hastes pontiagudas do bravo animal.
Estava para se ir dali, fugindo daquele animal bravio sem cumprir a missão. Foi quando o touro, baixando mais uma vez a cabeça negra deu ares de querer investir.
Perante a visão do touro nesta nova ameaça, a mulherzinha caiu para um lado, desmaiando.
Ali ficou por tempo interdito, não se sabe por quanto, parecendo morta. O touro, vendo-a naquele estado e a baba por limpar, deu duas voltas ainda mais enfurecido e acabou por desaparecer, ouvindo-se de algures os silvos aflitivos da cobra com aspecto humano. Pai e filha continuaram assim encantados, não se sabe por quanto tempo, provavelmente para sempre. Coitados!
Quando a mulher foi encontrada por familiares e outros populares, que já a faziam ferida ou morta nalgum declive da serra, não conseguiu articular palavra para dizer o que tinha acontecido. Instavam com ela, mas só lhe viam os olhos olhar para nenhures, perdido todo o brilho, como se estivesse em transe. E estava.
“Que terá acontecido à mulherzinha?”
“Parece que foi lavar a roupa e caiu para o lado, variando de vez.”
“Pior ainda, foi ter perdido a fala, que nem sequer sabe dizer quem é e onde está.”
A partir dali nunca mais recobrou o juízo.
Quanto ao alcaide encantado em touro e a filha em mulher serpente nunca mais se ouviu falar deles, pois o encantamento redobrou e não consta que tivessem proposto nova tentativa a alguém.