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sábado, 28 de dezembro de 2019

PÓVOA DE LANHOSO - O Pote de Ouro - lenda nº 6


Texto e ilustração de Santos Costa

É voz corrente que a ponte romana Mae Gutierres está há muitos anos encantada. É também tradição que essa ponte só pode ser desencantada por um pastor que possua no seu rebanho uma cabra que dê dois cabritinhos de uma só gestação numa noite de S. João. Mais se adianta: que essa cabra deixe os cabritinhos mamarem o leite todo.
Ainda de acordo com a mesma tradição, o pastor não poderá aproveitar-se do leite da cabra, seja a que título ou por razões que forem.
Se houver cumprimento integral daqueles preceitos, passado um ano terá de dirigir-se o pastor, pela meia-noite do relógio, à dita ponte, pois então aparecerá, à tona da água, um pote de ouro, também ele cheio de ouro.
Um pastor de Brunhais conseguiu que a sua cabra parisse dois cabritinhos na noite de S. João, bem como obteve os restantes requisitos. Numa dada altura, retirou o leite da cabra, mas esta operação contrariava uma das propostas, só se dando conta depois de já o ter feito. Arrependido, deitou esse leite pelo lombo da cabra.
Passado o ano, o pastor foi até à beira do rio Ave com os cabritinhos. De facto, lá apareceu o pote com todo o ouro a boiar. Pegou ele no pote, todo contente, e voltou para casa, dizendo para si mesmo:
- Este tesouro, com Deus, cá vai!...
De súbito, de dentro do pote veio a resposta:
- O pior foi o leite que tiraste, deitando-o pelo lombo da cabra!
- Deitei-o aí porque me esqueci da lição – desculpou-se o pobre homem, julgando que o assunto estivesse esquecido ou nem passasse apercebido.
- Pois essa foi a tua perdição!
O pote desapareceu das mãos do pastor e lá continuará à espera, junto da ponte romana sobre o rio Ave.


quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

MANGUALDE - O POÇO DOURADO - lenda nº 61


Texto e ilustração de Santos Costa

Entre as povoações de Corvaceira e a de Chãs de Tavares, no concelho de Mangualde, parece ter havido, em tempos perdidos na memória, um poço de ouro. Supõe-se na lenda que as suas águas tivessem um tom de amarelo escuro, devido certamente a alguma estranha composição química, mas a mesma lenda dá-lhe outra explicação.
Aquele poço possuía grande riqueza aurífera, tanto assim que eram amarelas as suas águas. Quem retirasse água do poço, levaria consigo riqueza bastante para viver à barba longa durante toda a vida. Essa perspectiva deixava cada um com desejos de tentar. No entanto, não era fácil ir lá encher sequer um copo, pois uma moura mal encarada, toda bem arreada de roupa, brincos e braceletes de ouro, com corpo de sereia da cintura para baixo, não o permitia ao mais pintado aventureiro.
Como todos sabiam a sanha com que ele defendia o tesouro, que devia ser seu, não aparecia uma alma que fosse a tentar a sua sorte, não fosse ela por lá encantar o timorato e deixá-lo por ali transformado numa coisa qualquer, sem sopro de vida.
Ora aconteceu que certo indivíduo achou que podia arriscar a má disposição da guardiã do tesouro e foi até ao dito poço com toda a vontade e empenho para encher um odre com tal preciosidade.
Estava ele com a vasilha praticamente cheia, quando apareceu a moura junto às pedras que se encontram junto ao poço, as quais, segundo dizem, ainda lá se encontram. O homem, se bem que fosse corajoso, já ia seguir o seu caminho quando a moura, sem que nada o fizesse prever, lhe aplicou um golpe com a cauda de peixe. Fê-lo com tal ímpeto, que logo deixou ali estatelado o ousado aventureiro. E tal foi o impacto desse golpe recebido, que dele ficou vestígio na pedra maior junto ao poço, o que ainda se pode confirmar.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

AGUIAR DA BEIRA - O PENEDO DA LEZÍRIA - lenda nº 70

Texto e ilustração de Santos Costa

Na Lezíria, localidade do concelho de Aguiar da Beira, há uma fraga que o povo chama Penedo da Moira. Diz-se que vive nessa fraga uma donzela de beleza inigualável, que por ali ficou escondida, encantada e recatada.
Para entreter o seu tempo, diz-se ainda que ela vai tecendo no seu tear de marfim, umas maravilhosas medas de ouro.
Mirones que quisessem observar e beleza ou o corpo da moura, por muito que o tentassem, não conseguiram até aos dias de hoje.
Certo dia, quando um homem da Lezíria por ali passou, tinha a moura acabado de estender aos raios solares aquela riqueza em ouro puro sobre a rocha.
Sim, o homem passou pela esteira dourada e pareceu-lhe tratar-se de trigo a secar ao sol. A moura tinha artes de fazer confundir a riqueza exposta, para evitar que alguém se tentasse a roubá-la. Só que, desta vez, o homem achou que aquele “trigo” era muito bonito e com ares de abandonado, pelo que tratou de embolsar uma pequena quantidade, regressando após ao povoado.
A moura tinha ficado escondida por um penedo a observar a manobra.
Na taberna, em frente de um copinho de cachaça, ficou ele desejoso de mostrar aos amigos o achado e lançou um punhado do “trigo” sobre o balcão. Todos os presentes soltaram uma exclamação de espanto: em cima do balcão luziam pepitas de ouro.
O homem voltou à pressa ao Penedo da Moira na esperança de encontrar o resto do “cereal”, mas a pedra estava lisa como a cabeça de um careca. Tudo havia sumido. Ouviu ele então, sem saber de onde, uma voz feminina a justificar a ausência do que ele vinha buscar:
- Olha, meu palonço! Tivesses aproveitado!

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

TABUAÇO - O MEALHEIRO DA TECEDEIRA - lenda nº 56

Texto e ilustração de Santos Costa

Certo rapaz de Tabuaço ficou órfão muito cedo. Como não havia ninguém capaz de o criar, foi entregue a uma tecedeira que vivia sozinha no povo.
Ele cresceu e foi sempre educado e trabalhador no serviço de pedreiro. Todo o dinheiro que ganhava entregava-o à tecedeira para que lho guardasse.
Quando chegou a idade de namorar, disse o rapaz à tecedeira que ia construir uma casa com aquelas poupanças, para nela viver com a mulher.
Aconteceu, porém, uma coisa inesperada. Dias depois de ter falado nisto à mulher que o criou, esta faleceu. Mas, ainda pior do que isso, o rapaz não ficou a saber onde a tecedeira lhe guardava o dinheiro.
Lembrou-se então de expor o caso ao pároco.
- Vais em tal dia, à meia-noite, ao pé da igreja - recomendou-lhe o padre. - Se vires passar uma procissão, repara bem se lá vai a tecedeira e pergunta-lhe onde guardou o dinheiro.
O rapaz assim fez. Foi até à igreja matriz e, quando viu passar a tal procissão com velas acesas, assustou-se de tal maneira e de sorte que nem viu a tecedeira.
Foi falar novamente com o pároco. Este disse-lhe que arranjasse coragem e que visse melhor. A tecedeira era a última da procissão, dado ter falecido há menos tempo.
O rapaz então arranjou coragem e, ao reparar na última vela acesa que seguia naquela estranha procissão, reconheceu a tecedeira. E falou com ela, perguntando-lhe onde tinha escondido o mealheiro.
- Ao que tu te aventuraste! – Foi assim a resposta que ela lhe começou a dar. – Podias ter ficado tolhido! O dinheiro está escondido atrás do tear, onde sempre esteve. Aproveita algum e manda dizer umas missas por mim.
De facto, o dinheiro lá estava.

sábado, 23 de novembro de 2019

TRANCOSO - COMPREM BAETA - lenda nº 1

Texto e ilustração de Santos Costa

Gonçalo Anes Bandarra foi um poeta e profeta de Trancoso. Sapateiro de profissão, vivendo na primeira metade do século dezasseis, profetizou muitas coisas, de entre elas a restauração de Portugal. Chegou a ser julgado pela Inquisição, mas livrou-se de ser queimado na fogueira, sendo então proibido de fazer mais trovas proféticas.
Ora aconteceu que passeando dois escudeiros de Trancoso, encontraram o Bandarra a meditar junto do castelo. Estava ele sentado placidamente quando os dois o abordaram. Queriam saber o que ia acontecer nos tempos mais próximos.
- Tens alguma coisa de novo, Gonçalo Anes?
O Bandarra encarou-os e disse:
- Sim, temos.
- E quê? – tornaram os escudeiros.
- Que se compre baeta.
Os escudeiros entenderam que na casa de algum deles ia acontecer alguma morte. Comprava-se a baeta para se vestir quando houvesse luto.
- E qual de nós é que há-de comprar baeta?
O Bandarra respondeu:
- Todos.
Acaso viria alguma peste que levasse a maior parte da gente da vila? Intrigados e sem outra resposta mais esclarecedora, pois o Bandarra dava mostras de nada querer acrescentar, os dois escudeiros continuaram o seu caminho.
Daí a poucos dias adoeceu gravemente o infante D. Luís, filho de el-rei D. Manuel e, por sua morte, foi declarado luto nacional em todo o reino.
Então os dois escudeiros entenderam o vaticínio do Bandarra. Todos os portugueses compararam baeta.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

VIDIGUEIRA - A COSTUREIRINHA - lenda nº 37

Texto e ilustração de Santos Costa

Houve em tempos uma mulher que era costureira e fazia roupas para as freguesas. Trabalhava depressa e bem, pelo que os seus serviços eram muito requisitados pelo povo.
Aconteceu, porém, qualquer coisa que alterou a artesã e a vida da freguesia que a ela recorria: adoeceu com gravidade e, naturalmente, deixou de trabalhar, silenciando na rua o ruído da sua máquina de costura.
- Coitada dela - dizia uma cliente, lamentando não ter quem acabasse o vestido para o casamento de uma filha.
- Coitadas de nós, também - emendava uma outra -, porque não há por estas terras ao redor quem a possa substituir.
A mais interessada na recuperação da saúde era, como é natural, a própria doente. Os remédios não faziam efeito e a doença teimava em permanecer no seu lar. Até que, certo dia, a costureira se lembrou de fazer uma promessa:
- Se eu me curar, prometo vender a máquina de costura e, com esse dinheiro, distribuirei esmola pelos pobres.
O certo é que com promessa ou não, ela curou-se. No entanto, decidiu esquecer o prometido e nada de vender a máquina ou de dar qualquer esmola aos pobres.
Até que morreu, meses depois.
Não se sabe o que aconteceu à máquina de costurar, mas ficou na memória que ela, depois de morta, andava com a máquina às costas a coser na casa das freguesas. Pelos menos, estas não paravam de ouvir o matraquear da máquina, no cumprimento de um castigo que parecia ser eterno.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

SANTARÉM - A CONQUISTA - lenda nº 25

Texto e ilustração de Santos Costa

Quando D. Afonso Henriques decidiu tomar Santarém aos mouros, incumbiu dessa tarefa um cavaleiro da sua confiança, de seu nome Mem Ramires. A estratégia inicial era esse cavaleiro entrar disfarçado na fortaleza e espiar todos os pontos fracos para serem tidos em conta num ataque.
Mem Ramires disfarçou-se de bufarinheiro trajado como um vulgar árabe e entrou na fortaleza, andando por toda a cidade, vendo e ouvindo o que interessava para se realizar uma investida com êxito.
Depois de cumprida a tarefa, deitou a Coimbra, onde se encontrava D. Afonso e colocou-o a par do que viu, dando o seu parecer.
Assim, numa manhã de Março de 1147, um pequeno número de guerreiros pôs-se em marcha para cumprir audacioso e secreto plano. Montaram o arraial no alto de Pernes, onde esperaram que caísse a noite.
Em silêncio, os guerreiros cristãos iniciaram a investida, jurando Mem Ramires, que a integrava, que seria ele o primeiro a entrar em Santarém.
Lançaram uma corda com um gancho, que se prendeu num dos merlões das muralhas e por aí subiram vinte e cinco cavaleiros, tudo com esforço e a pulso. Mem Ramires, como tinha prometido, foi o primeiro a alcançar o objectivo, fazendo arvorar nas ameias o estandarte cristão.
Houve renhida luta nas ameias e nos passeios da ronda, mas os cristãos levaram a melhor sobre os defensores mouros. Quando raiou a manhã do dia 14 de Março de 1147, o castelo estava tomado.

domingo, 10 de novembro de 2019

BELMONTE - A ARCA VOADORA - lenda nº 9

Texto e ilustração de Santos Costa

Quando descobriu o Brasil, Pedro Álvares Cabral, navegador português de Belmonte, levava consigo uma imagem de Nossa Senhora da Esperança. esta imagem chegou a ser transportada até à Índia, onde uma capela em sua homenagem foi erguida. Actualmente, a imagem está na igreja da Sagrada Família, em Belmonte, e a ela anda ligada uma lenda.
Um soldado de Belmonte, de nome Manuel, decidiu combater os mouros. Como era corajoso, mostrou o seu ardor no mais aceso da luta, espalhando inimigos caídos à sua volta. Na viagem de regresso ao reino, o barco em que viajava foi capturado por piratas mouros, que o prenderam nas masmorras de um castelo, lá nas arábias. Ficou num catre húmido e escuro, na companhia de ratazanas, até ao dia em que os seus carcereiros o venderam como escravo.
Foi então comprado por um mouro rico, que o pôs a trabalhar nos serviços mais duros, alimentando-o mal e pondo-o a dormir dentro de uma arca de cereal, a qual tinha o cuidado de fechar à chave.
Manuel falava muito em esperança, a tal ponto de o mouro querer saber o que significava.
- Esperança é o desejo de regressar a Belmonte.
E o mouro fechava-o novamente à chave na tal arca.
Manuel apelava à Nossa Senhora da Esperança com tal fervor, que um dia esta lhe apareceu,, abrindo a arca.
- Irás cruzar os ares dentro da tua arca.
Era vésperas do dia de Páscoa e a arca voou pelos ares, indo aterrar em Belmonte com o Manuel Lá dentro.
O povo erigiu nesse sítio a capela de Nossa Senhora da Esperança.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

ALMADA - SANTO ANTÓNIO DA CHARNECA - lenda nº 68

Texto e ilustração de Santos Costa

D. Aires Saldanha tinha uma filha chamada Ana e ao seu serviço um escravo negro de nome Macumba. A filha vivia na ilusão de encontrar um pretendente, coisa que o pai não queria; o escravo vivia na obrigação de arranjar lenha para o solar, transportando-a num carro de bois.
Numa ocasião, indo Macumba com um carro cheio de lenha, apareceu-lhe junto ao caminho um frade misterioso. Os bois estacaram e o escravo perguntou ao frade:
- Quem sois vós?
- Chamo-me António e vivo no céu - respondeu o frade.- Já faleci há muito tempo.
- Que me quereis, Santo António?
- Quero que me leves um recado ao teu amo, da minha parte, para construir aqui, na Charneca, uma capelinha.
O escravo falou com Ana antes de falar com o amo. A rapariga não queria acreditar. No entanto, pouco depois, o mesmo frade apareceu a Ana e disse-lhe:
- Conforme já disse a Macumba, peço-vos que rogueis a vosso pai que construa a capela na Charneca.
- E sabeis o sítio onde ela deve ser construída?
- Não. Deixai que Macumba leve os bois e, onde eles pararem, é esse o sítio escolhido.
- Pois sim, falarei a meu pai.
- Ah!... Dentro de dias virá a este vosso solar um mensageiro da corte. Recebei-o bem, pois virá a ser vosso esposo.
Efectivamente os bois pararam no que era o local escolhido. D. Aires e a filha juntaram as suas vontades às do povo e a capela foi construída, dando lugar ao povoado que se chama Santo António da Charneca.
Quanto a D. Ana, cumpriu-se o vaticínio. O tal mensageiro veio para ficar e casou com ela.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

ALCÁCER DO SAL - O CASTELO SE DÁ - lenda nº 28

Texto e ilustração de Santos Costa

D. Afonso Henriques teimara em conquistar aos mouros o Castelo de Arminho, mas os defensores da fortaleza também eram teimosos e não estavam dispostos a abrir sequer uma nesga da porta.
Junto do rei estava um dos seus melhores homens, de seu nome Nuno Mendes, cavaleiro ao qual o monarca recusou dar a mão de sua filha Urraca, uma vez que já a tinha prometido a D. Fernando II, rei de Castela.
O cerco do castelo de Arminho durou algum tempo, mas não podia durar sempre. Por isso, o rei chamou de parte Nuno Mendes e encarregou-o de uma delicada missão, que era ele pedir para entrar sozinho no castelo e parlamentar com o alcaide mouro.
- Dizei a esse mouro que se teimarem em lutar e não abrirem as portas, quando eu os vencer e entrar dentro das muralhas, darei ordens para que todos sejam passados à espada, seja quem for!
Nuno Mendes partiu nessa missão, acompanhado de um fiel soldado. Solicitaram-se tréguas e as portas do castelo abriram-se para entrar o mensageiro.
O certo é que Nuno Mendes terá sido convincente, porque algum tempo depois chegou-se à muralha, brandiu a espada e gritou para as hostes cristãs lá em baixo:
- O castelo se dá!
D. Afonso aceitou a rendição e poupou a vida aos vencidos, cumprindo a palavra. Tratou logo de mudar o nome do castelo, que até ali era Castelo de Arminho e passou a ser o Castelo da Seda, resultado das palavras de Nuno Mendes: "o castelo se dá!"

domingo, 25 de agosto de 2019

ALMEIRIM - A SOPA DE PEDRA - lenda nº 45

Texto e ilustração de Santos Costa

No peditório por terras de Almeirim, um frade foi bater ao ferrolho de um lavrador. Estava o lavrador e a mulher em casa e, sem possibilidades de oferecer o que quer que fosse, o homem disse ao frade:
- Nada temos para vos dar, bom frade.
Sem se mostrar incomodado, disse o frade:
- Bem, eu apenas queria fazer uma sopa de pedra, pois ando sem provar um migalho há várias horas.
Dito aquilo, pegou numa pedra que apanhou do chão, depois de a escolher entre muitas outras .
- Esta serve - disse o frade.
- Isso serve para fazer uma sopa?! - interrogou a mulher.
- Uma sopa de qualidade, se me deixarem entrar e me emprestarem uma panela.
Satisfizeram-lhe os pedidos e ele encheu a panela com água, colocando-a ao lume de lenha.
- Se me arranjarem um pedacinho de unto, ficava uma delícia - pediu o frade.
Trouxeram-lhe o unto. E ele:
- Ora, já agora umas pitadinhas de sal e um cibo de chouriço para a pedra ganhar paladar.
Pediu ainda uma cebolinha, um dente de alho e uma batata.
- Sairá daí coisa que se coma? - perguntou o dono da casa.
- Não vai ter dentes para rilhar a pedra - disse a mulher.
Quando achou a sopa pronta, o frade pediu licença e sentou-se à mesa para aviar o conteúdo da panela. O lavrador e a mulher viram-no comer com gosto, mas repararam que ele não tocou na pedra.
- E a pedra, senhor frade?
- Muito lhe agradeço a lembrança. Vou levá-la comigo para servir da próxima vez.


sexta-feira, 23 de agosto de 2019

CASTELO DE VIDE - O RAPTO DE GUIOMAR - lenda nº 59

Texto e ilustração de Santos Costa

Guiomar Nunes era filha de Rui Nunes das Astúrias. Era uma jovem muito obediente a seu pai e, opor ordem dele, mas contra a sua própria vontade, foi obrigada a casar com um fidalgo já velho. De tão velho que era, esse fidalgo não tardou a falecer, deixando a jovem Guiomar no estado de viúva.
Quem não queria ver a sua filha viúva era Rui Nunes, de tal sorte que chegou a dizer a Guiomar:
- Já tenho outro pretendente para vós, minha filha.
Acontecia, porém, que Guiomar já se encontrava apaixonada por Martim Gil, o cavaleiro que tinha a mesma idade da dela. Mal chegou a novidade aos ouvidos do pai, tratou logo de pressionar a filha:
- Proíbo-vos que vos encontreis com Martim Gil.
E ela, de cabeça baixa, mais uma vez obedeceu, mesmo sabendo que o pretendente que o pai pretendia tinha idade para ser seu pai:
- Assim farei, senhor meu pai, a vosso rogo.
Porém, D. Martim Gil não fizera semelhante jura; antes, jurara a si próprio que Guiomar Nunes teria de ser sua, custasse o que custasse. No entanto, uma dificuldade se deparava ao valente cavaleiro: como é que tiraria Guiomar do castelo de seu pai? Só tinha uma hipótese, que era raptar a rapariga e levá-la para as suas terras de Vide, que lhe tinham sido doadas por D. Afonso II.
Se bem o pensou, assim o fez, escalando o castelo de Rui Nunes sem ninguém dar por isso, carregar Guiomar às costas e descer pelas mesmas cordas com que tinha subido até atingir o chão, onde o esperava um possante cavalo.
Quando soube que a filha tinha sido raptada por D. Martim e que ambos se encontravam em terras de Vide, no castelo aí construído e região de muito e bom vinho, ele perdoou ao genro e aceitou o casamento.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

GAVIÃO - O LOBISOMEM -lenda nº 43

Texto e ilustração de Santos Costa

Dois jovens folgazões, solteiros, combinaram ir a um bailarico numa terra vizinha da sua. A páginas tantas da noite, quando um deles, talvez com os pés doridos de tanto bailar, achou que era chegada a hora de colocar as botas ao caminho, chamou o companheiro para fazerem a viagem juntos. No entanto, o amigo disse que ainda ia ficar mais algum tempo, pelo menos enquanto houvesse par para bailar.
O bailarico não deve durava muito mais e o amigo que ficou decidiu regressar a casa, fazendo o trajecto sozinho. Já seguia a meio do percurso quando encontrou um burro sem albarda e sem arreios... E possivelmente sem dono.
- Ora, um burro vem mesmo a calhar para eu ir para casa.
Montou no burro, mas andados alguns passos, o animal começou a crescer e ficou muito alto. Tão depressa cresceu, também depressa diminuiu, pelo que o retardatário, mal se apanhou no chão, fez o caminho a pé, muito assustado e intrigado.
Ia a entrar na povoação quando avistou o companheiro que saiu do baile mais cedo. Contou-lhe o que aconteceu com o burro e o amigo disse:
- De noite não te metas com quem passa; quem vai, vai e quem está, está! Eu podia matar-te!
- Então eras tu que fazias de burro?
O outro disse que era lobisomem e que naquela noite ficou transformado em burro. Pediu-lhe para o ajudar a quebrar a sina na próxima noite de lua cheia. Disse-lhe a hora e o local e que levasse um espeto para picar um cavalo que lá aparecia, quebrando-lhe assim a sina. Se falhasse, além de não lhe pôr fim ao fadário, ficaria com outro igual ao dele.
Finalmente, sem falhar, o amigo espetou o pico no tal cavalo e quebrou a sina do amigo lobisomem.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

TRANCOSO - A CURVA DO COSTA LIMA - lenda nº 69

Texto e ilustração de Santos Costa

Toda a gente sabia, em Trancoso, que Francisco da Costa Lima ou muito simplesmente Comentador Costa Lima, foi uma das mais cativantes figuras da história de Trancoso. Granjeou fortuna em África e desses cabedais adquiriu um veículo automóvel, o primeiro visto no concelho. Foi buscá-lo a Lisboa, fazendo-se acompanhar por dois amigos, naquele ano de 1903.
Tratava-se de um "Darracq", possivelmente um modelo do ano anterior, que acabou por transformar a viagem do seu proprietário e dos acompanhantes numa odisseia até chagarem a Trancoso. Assim foi que, perto da vila de Tábua, virou-se o carrinho, tendo os seus ocupantes ficado por baixo do veículo.
Vamos ao incidente que se toma por lenda.
Seguia certo dia o comendador Costa Lima sobre a sua viatura, erecto e satisfeito como rei babilónico quando, chegado a uma curva que ficou com o seu nome, sem mais aquelas o carro deu em estacar subitamente. Dali não saía, nem para trás nem para diante. Varrendo do espírito que o carro tivesse conserto, Costa Lima saltou dele para fora. O carro mantinha o motor a trabalhar, mas onde parou é como se teimasse como jumento.
Temperamental como era, Costa Lima não achou graça à brincadeira, tanto mais que no aperto de Tábua saiu de lá com uma escoriação no olho direito. Vai daí, puxou da pistola e ferrou um balázio na carroçaria do automóvel. Mais não faria se se tratasse de um cavalo moribundo, com a diferença de que aquele tiro não era de misericórdia, mas de raiva.
Mal recebido o projéctil, o "Darracq" deu um solavanco e pôs-se a andar, desenfadado como um touro.

domingo, 18 de agosto de 2019

CARTAXO - A COBRA DA FONTE - lenda nº 63

Texto e ilustração de Santos Costa

Corre pela tradição o dito:
"No Bicho Feio existe um tesouro. E quem o encontrar morrerá sem dele desfrutar".
Na origem do dito parece estar a lenda da moura encantada que aparecia, por vezes e quando lhe dava na gana, na fonte do Bicho Feio.
Em certa ocasião, houve um caçador que andava à caça, que teve o privilégio de se deparar com ela. A moura era bonita e o caçador também não era feio, pelo que simpatizaram um com o outro, trocando promessas e juramentos de amor. Tão súbito se conheceram, tão súbito se apaixonaram, a tal ponto que o caçador se lembrou de que tinha de ir a casa para tratar de um assunto que devia ser inadiável. Prometeu voltar logo que resolvesse essa questão, e não tardaria a fazê-lo, porque era expedito nos afazeres como o era na pontaria com a sua espingarda.
A moura ficou-se na fonte à espera do seu amado, ciente de que este, de tão enamorado que estava, era capaz de despachar o assunto e, como o ditado diz, "ir num pé e vir no outro".
O tempo foi passando e nada de aparecer o caçador. O que lhe teria acontecido, se realmente ele se arrependeu das promessas e juras, não chegou a jovem moura a saber. O certo é que não mais o viu.
De tanto esperar junto àquela fonte de mergulho, com o desgosto a moura transformou-se em cobra e, em algumas noites, fazendo ondular as águas da fonte, faz ouvir o seu canto lamentoso.

sábado, 17 de agosto de 2019

BAIÃO - FREI COMILÃO - lenda nº 40

Texto e ilustração de Santos Costa

No reinado de D. João III, havia no convento de Ancede um frade que estava sempre disposto a comer e pouco desejoso de orar. Quando tocava a hora de ir para o refeitório, era sempre o primeiro a chegar e o último a partir, ao contrário do que acontecia no coro.
Era segura e frequentemente repreendido pelos superiores do convento, mas ele tinha sempre a mesma resposta na ponta da língua:
- Muito comer, pouco rezar e nunca pecar, leva a alma a bom lugar.
Em certo dia resolveram os frades mandar preparar uma boa merenda e ir tomá-la para lá de Oliveira. Receando o excessivo consumo e sofreguidão de Frei Comilão, guardaram segredo absoluto e nada lhe disseram. No entanto, parecia que para Frei Comilão não existiam segredos em tudo o que tocava a comida. Possuía um sexto sentido para adivinhar, como se tivesse um dedo adivinho, pelo que logo deu conta da astúcia dos irmãos do convento.
Visto isso, antecipou-se a todos eles e partiu para Oliveira, disposto a encher a barriga do bom e do melhor, uma vez que a merenda já estaria pronta. Quando chegou ao rio e não viu qualquer embarcação que o levasse para a outra margem, despiu o capote monástico, estendeu-o sobre as águas e assim navegou no rio, mau grado o seu corpanzil, remando com as largas mãos.
Quando os outros frades chegaram ao local onde o cozinheiro servia a merenda, em Oliveira, ficaram desapontados com a desfaçatez.
- Muito comer, pouco rezar e nunca pecar, leva a alma a bom lugar - repetiu ele, passando ao estreito um bom naco de carne assada.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

COIMBRA - O ALCAIDE FIEL - lenda nº 13

Texto e ilustração de Santos Costa

D. Afonso III, com o apoio do papa, depôs D. Sancho II. Muitos castelos, porém, permaneceram fiéis ao rei deposto, tendo sido reconquistados pelo novo monarca. Houve alguns que continuaram fiéis ao anterior, negando-se a entregar os castelos a D. Afonso III, como foi o caso do castelo de Coimbra, onde era alcaide Martim de Freitas.
D. Sancho partiu para o exílio em Toledo, onde veio a falecer mais tarde, sendo então sepultado na catedral daquela cidade.
D. Afonso III, o conde de Bolonha, determinado em acabar com as resistências dos castelos que não lhe prestavam vassalagem, resolveu pôr cerco ao castelo de Coimbra, onde ainda resistia Martim de Freitas. Este, teimosamente, recusara render-se e entregar as chaves, mesmo depois de o rei lhe ter prometido muitas benesses, caso obedecesse. Porém, nem as promessas nem o cerco e os combates demoveram o fiel alcaide de D. Sancho, que resistiu.
Quando chegou a Coimbra a notícia da morte de D. Sancho, Martim de Freitas deixou o castelo, pediu um salvo-conduto a D. Afonso III, atravessou o cerco dos soldados do rei e dirigiu-se a Toledo, onde confirmou a notícia da morte. Ali conseguiu que lhe fosse aberto o túmulo e viu o cadáver do rei, de quem recebera a chave e a quem dedicara fidelidade. Pegou então na chave da cidade de Coimbra e pousou-as nas mãos do cadáver. Em seguida, retomando a chave, regressou a Portugal e foi entregá-la a D. Afonso III.

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

ANGRA DO HEROÍSMO - O MENINO DO CORO - lenda nº 5

Texto e ilustração de Santos Costa

A lenda da imagem de Santo António, da Sé de Angra do Heroísmo, remonta a um episódio do séc. XVIII.
Uma criança deu certo dia em correr pelas dependências da sé. Tratava-se de um menino do coro e ia a fugir do seu mestre de capela, que o queria castigar por um delito menor. Esse delito dizia respeito particularmente a uma falta que o mestre considerava muito grave: a criança não entoara as canções da festa de forma correcta.
A tremer de medo do varapau que o mestre brandia atrás dele, a criança fugia a sete pés. Através dos corredores frios da sé, o miúdo ouvia distintamente os passos rápidos do mestre e as promessas de castigo que ele afirmava concretizar se lhe deitasse as mãos.
Às tantas, o miúdo enveredou pelas escadas da torre.
- Espera aí, meu malandro! Daí não podes tu fugir!
Chegado lá acima, junto dos sinos, a saída era para o precipício. Era alto, lá isso era. Mas sem pensar no que fazia, a não ser fugir ao castigo que se aproximava, a criança saltou para o vazio.
Foi então que ocorreu algo nunca visto. Um vento milagroso tomou o menino pela opa e fê-lo pairar, levando-o suavemente como um pássaro para o ir depositar no telhado do convento de Nossa Senhora da Esperança.
Em reconhecimento, o pai do rapaz mandou fazer a imagem de Santo António e adornou-a com a opa do filho, que veio a ordenar-se padre.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

GRÂNDOLA - O JAVALI DE GRÂNDOLA - lenda nº 26

Texto e ilustração de Santos Costa

Nos plainos de Grândola, que em 1527 era uma simples aldeia, costumava ter couto de caça o filho bastardo de D. João II, D. Jorge de Lencastre. Amante da caça, ali se distraiu com os seus convidados em muitas caçadas, na companhia de criados e mateiros.
Parece que uma das presas favoritas de D. Jorge era o javali, espécie que não abundava assim tanto como o fidalgo pretendia, aproveitando o ensejo para exercitar esse dote quando o avisassem da presença de um ou mais exemplares de javali. Mandou ali construir o seu palácio, demorando cada vez mais tempo.
Conta-se que estando D. Jorge à janela desse palácio, viu passar um bom exemplar de javali, o qual, sem o menor temor, passou à vontade por baixo da janela onde o nobre se encontrava.
À pressa, D. Jorge mandou reunir todos os monteiros disponíveis, que logo se apressaram em arrear os cavalos, subir para eles e partirem em perseguição do javali.
Por muito que tentassem apanhar o animal, este escapou-lhes, falhando todas as tentativas de o caçarem, o que irritou D. Jorge. Aconteceu que faltou à caçada o mais hábil caçador do seu naipe, nesse dia ausente numa audiência judicial em Alcácer do Sal. Grândola não era concelho nem tinha justiça própria.
D. Jorge decidiu, a partir de então, solicitar ao rei que concedesse foral e justiças a Grândola, passando a vila.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

PENEDONO - O MORTO QUE MATOU O VIVO - lenda nº 4

Texto e ilustração de Santos Costa

O José Chuço fazia parte de uma quadrilha de salteadores com origem no concelho de Trancoso. Este José Chuço tinha por amante uma moça do Terrenho, daquele concelho, a que correspondia com carinho redobrado e dádivas subtraídas a condizer.
Aconteceu, em determinada noite, o infortúnio para o ladrão e amante. Houve um delator que nessa noite correu à vila de Trancoso para o acusar às milícias, dizendo-lhes que ele se hospedava na casa tal, de fulana tal. Ora, a milícias pelavam-se para o apanhar e deram-lhe caça. Cercaram a casa, deram voz de prisão e esperaram que o Chuço, perante o ardil, viesse em ceroulas e descalço para se lhes entregar.
O Chuço levantou-se da cama e disse para a amante:
- Vou-me entregar para me levarem preso!
Porém, mal pôs os pés na soleira da porta, os milicianos dispararam sobre a indefesa criatura, que logo caiu redonda. Depois de arrastarem o Chuço para o limite da aldeia, ali deixaram o corpo estendido, como cão abatido.
Já uivavam os lobos e cães quando um lavrador apiedado deu com o corpo e tratou de carregar o cadáver no seu carro de bois e seguiu para Penedono. Entrou na igreja daquela vila, providenciou umas tábuas rasas e deitou o morto na sacristia, onde certamente o veriam pela manhã e lhe dariam enterro.
Ainda nessa mesma noite, deu em entrar na igreja o sacristão, pois julgara ter ouvido ruídos estranhos. Abriu a porta da sacristia, entrou às escuras e, aos apalpões, tratou de acender uma vela. Foi então que deu com o cadáver.
- Credo! Meu Deus!
Mais não teria dito ou nem teria dito tanto. Morreu subitamente de susto.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

FIGUEIRA DE CASTELO RODRIGO - Álamo, Fala! - lenda nº 34

Texto e ilustração de Santos Costa

Em certo lugar do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo surgiu enorme algazarra. Havia sido cometido um crime de homicídio sobre um pobre de Cristo sem que fosse visto o tratante que foi o autor da morte. Houve quem chegasse à conclusão que tinha sido obra de um rapaz do lugar.
Como o delito tinha sido cometido junto a um álamo, resolveram castigar o suposto culpado na mesma árvore, majestosamente preso pelo pescoço por uma corda.
O rapaz teria invocado a sua inocência, mas os acusadores e carrascos ficaram de ouvidos moucos e as suas consciências não davam mostras de enxovalhadas pelas razões e súplicas do infeliz.
Quando a corda já afagava o nó de Adão da inocente criatura, o álamo, considerando um abuso do direito tal julgamento, começou a fazer-se ouvir através de suspeitas vozes vindas do seu interior, como se a árvore abrisse manifestamente uma secular tendência vocal.
O carrasco, intrigado com o inopinado facto, aproximou-se da árvore e increpou-a à laia de juiz que intima a testemunha:
“Álamo, fala!”
E o álamo falou. Narrou como se tinha dado o crime à sua sombra e o nome do assassino.
“O criminoso não é esse a quem quereis apertar a garganta, mas fulano que está nesta hora repimpado em casa a ratar um salpicão.”
Assim se salvou o rapaz e se castigou o verdadeiro culpado, graças ao testemunho e à fala do álamo.
Essa ordem – álamo, fala! – ficou gravada na memória dos moradores que, a partir daí, a deixaram para a posteridade no topónimo de Almofala.

domingo, 11 de agosto de 2019

AGUIAR DA BEIRA - A CABICANCA - lenda nº 62

Texto e ilustração de Santos Costa 
Conta a lenda que certo dia apareceu na torre da igreja de Aguiar da Beira um enorme pássaro, com um bico tamanhão nunca visto ou contado, ouvido ou sonhado. O povo, horrorizado com a aventesma, deixou de ir à igreja ouvir missa e exclamava:
“Santo Deus! Que bicanca aquela! Que bicanca!”
Aconteceu passar por ali um almocreve de Trancoso, de nome Martinho Afonso e de alcunha o Escorropicha, por ter fama e escama de enxugar uma boa soma de copos de vinho.
Era homem de coragem e porventura lá tinha então o seu copito e achou que aquele era dos tais trechos que lhe podia trazer mordomias e alvíssaras.
Carregou uma espingarda e dirigiu-se para a igreja onde a Cabicanca, indiferente no seu mirante, gozava o seu bocado. O Escorropicha com um olho aberto e outro arremelgado, como regem as leis da balística, apontou alto e com um pum de atroar a Lapa inteira, abateu a cegonha.
 “O Escorropicha matou a Cabicanca!”
Martinho Afonso foi guindado aos píncaros do heroísmo e transportado em ombros por toda a vila. O povo, susceptível de todas as dedicações, estava disposto a compensar o salvador: farnéis de bom chouriço; salpicão de encher sacos; azeite aos almudes; bons odres do melhor vinho; cabritos e leitões e bolsas recheadas.
Passada a história à História, depois da morte do Escorropicha, subsistiu a veneração. O pároco deu em pedir um padre-nosso para alívio da alma do valente, todos os domingos, na ocasião da missa.
Ainda hoje, referindo-se aos habitantes de Aguiar, muita gentinha os apelida de cabicancas, na amálgama da lenda que se tornou história e da realidade que se transformou em ficção.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

MONÇÃO - DEULADEU MARTINS - lenda nº 58

Texto e ilustração de Santos Costa

Um tal Pedro Rodrigues Sarmento, ao serviço de Henrique II de Castela, veio pôr cerco à vila de Monção. Decorriam então as guerras entre o rei D. Fernando I de Portugal e aquele rei de Castela.
Colocado o cerco a Monção, os sitiantes tinham como objectivo fazer render os da fortaleza através da falta de suprimentos, ou seja, rendição por força da fome, dado que não tinham os de dentro forma de fazer entrar víveres dentro das muralhas.
Era capitão-mor dos defensores Vasco Gomes de Abreu, casado com Deuladeu Martins, mulher inteligente e que não se furtava a uma luta. Foi ela que se incumbiu de distribuir as rações de pão pelos sitiados, adiando assim o que parecia inevitável, que era a rendição incondicional de Mação. A ração de farinha ia diminuindo a olhos vistos e, mal Deuladeu se apercebeu, encontravam-se as arcas apenas com escassa porção, que mal dava para um dia. Qualquer outra pessoa que não fosse a mulher do capitão-mor teria desde logo anunciado a rendição, mas ela era de outra têmpera. Achou uma solução e foi ter com o marido, expondo-a.
- Irás livrar-nos da fome?! -inquiriu o incrédulo Vasco Gomes.
- Não livrarei da fome, mas farei levantar o cerco - foi a resposta.
Sabendo ela que os soldados de Pedro Sarmento também passavam fome, juntou a farinha que restava e mandou cozer pães. Em seguida, subiu às muralhas e daí lançou esses pães aos castelhanos, dizendo-lhes:
- Aí vão esses pães que nos sobram, para vos matar a fome.
Visto o que julgaram fartura de víveres, os castelhanos levantaram o cerco.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

SINTRA - OS SETE AIS - lenda nº 42

Texto e ilustração de Santos Costa

Sintra foi conquistada aos mouros por D. Afonso Henriques com a ajuda de um cavaleiro cristão chamado D. Mendo de Paiva. Sintra era então designada pelos mouros como Xentra.
D. Mendo, em determinada altura, reparou que duas mulheres mouras, uma nova e outra velha, tentavam fugir. A moura mais nova era muito bonita e, mal viu o cavaleiro, soltou um suspirado "ai".
- Sois minhas prisioneiras - disse D. Mendo.
A velha ia dizer qualquer coisa quando a jovem moura soltou mais um "ai".
- Deixa-nos, cristão - suplicou a velha - ou acabarás por soltar a maldição desta jovem.
- Que maldição?
- Uma feiticeira fadou-a à morte quando ela soltasse sete ais!
A moura mais nova suspirou de novo. A velha avisou:
- Com este já são três ais e faltam apenas quatro.
- Pois sim - disse D. Mendo - mas eu quero-a para minha esposa e ela não soltará mais ais.
Ao ouvir aquela proposta, a jovem soltou mais um "ai".
- Aguardai aqui, mulheres! Voltarei para vos levar até um sítio seguro.
A velha avisou de novo:
- Minha ama acaba de soltar o quinto ai.
D. Mendo afastou-se, disposto a cumprir a palavra, receoso que a jovem soltasse mais "ais".
Mal ele se afastou, apareceram mouros, que tinham ouvido a promessa do cristão, e mataram a velha. A jovem soltou o penúltimo "ai". Quando os mouros lhe apontaram a lâmina de uma adaga, soltou o último e foi logo morta.
Quando D. Mendo regressou, viu cumprida a maldição. E Sete-ais deu Seteias, um campo onde se situa formoso palácio na serra de Sintra.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

POMBAL - AL-PAL-OMAR, O MOURO - lenda nº 22

Texto e ilustração de Santos Costa

Tinha como nome Al-Pal-Omar e era um mouro ainda jovem, valente guerreiro e senhor de grande sedução entre mulheres mouras e cristãs. Ciente desses encantos e acolitado por grande número de guerreiros, o mouro Pal-Omar abastecia o seu harém com numeroso lote de concubinas, bem guardadas por fiéis soldados e outros tantos eunucos, como era costume lá pelas arábias.
Quem não aceitava o harém e, mais ainda, a posse da terra, eram os cavaleiros Templários, que decidiram armar um exército para fazer frente às tropas de Pal-Omar. Mesmo assim, os Templários tiveram de recorrer à ajuda do arcanjo S. Miguel, cercando os mouros na fortaleza dos seus domínios, na região de Pombal. Travou-se duro e feroz combate, de que saíram vencedores os cavaleiros cristãos.
Dominadas as forças mouras, exterminados muitos adversários, os Templários não conseguiram deitar a mão ao jovem mouro Pal-Omar, que conseguiu fugir a uma morte certa, encavalitado entre as asas de uma enorme ave (possivelmente uma águia, embora se assegure que seria um pombo). Voou pelos ares  e aterrou num seu palácio encantado, onde já tinha precisamente encerrado um número considerável de mulheres do seu harém.
Ao saberem desse segundo refúgio, os Templários taparam todas as saídas do palácio, por terra e por ar, e construíram-lhe em cima um bom castelo de pedra.
Diz a lenda que o nome do mouro deu origem a Pombal, e que o castelo construído pelos Templários ainda se pode reconhecer, à distância, como o vetusto castelo de Pombal, sobre um maciço rochoso na margem do rio Arunca. Quanto ao mouro, continua algures sob encantamento.  

terça-feira, 6 de agosto de 2019

MELGAÇO - A INÊS NEGRA - lenda nº 57

Texto e ilustração de Santos Costa

Depois da batalha de Aljubarrota, D. João I partiu à conquista dos castelos que se tinham posto ao lado dos castelhanos. Uma das praças assim consideradas era a de Melgaço, a qual estava sob o comando de Álvaro Pais de Souto Maior, alinhado com D. João de Castela. E não era só ele! Lá na fortaleza encontrava-se uma mulher de armas, dita a Arrenegada, com quem os soldados não queriam tomar forças, porque ela levava a melhor.
Como a batalha pela conquista e tomada da praça não se tornava decisiva, limitando-se tudo ao cerco e escaramuças, sem que os sitiantes tomassem a fortaleza e os de dentro dela não saíssem, a Arrenegada propôs um acordo: resolvia-se a contenda com uma luta entre ela e outra pessoa, que ela escolhesse; dava solução dessa maneira à contenda, ao mesmo tempo que ela, Arrenegada, teria oportunidade de ajustar contas como uma inimiga antiga, que ela ia nomear para essa justa corpo-a-corpo. Escolheu a Inês Negra para sua adversária, uma mulher que morava na aldeia que se tinha ao lado do Mestre de Avis.
Acontecia que a tal Inês Negra, tal como a dita Arrenegada, era uma mulher possante e virava de cangalhas qualquer homem, pelo que o desafio foi logo aceite por esta. Se vencesse a Arrenagada, o cerco seria levantado e as tropas de D. João I não incomodavam mais Melgaço; se perdesse, a praça render-se-ia e o rei de Castela perdia um aliado.
Em terreiro improvisado, só as duas mulheres se enfrentaram, ambas e duas com a pele escura de tanto o Sol a tisnar. Nas muralhas e em volta delas, juntavam-se sitiados e sitiantes, uns sobre as muralhas, os outros no terreiro da luta.
A Inês venceu a Arrenegada e esta recolheu ao castelo, sem que os de dentro fizessem tenção de cumprir a palavra. No entanto, já a contar com algo semelhante, os soldados do rei português colocaram-se de forma a entrar na fortaleza mal as portas se abrissem para recolherem a vencida.
A Inês Negra foi a primeira a entrar e, subindo para uma das torres, gritou:
- Tornaste a nós, Melgaço! És de Portugal!

NOVAS LENDAS - NOVAS ILUSTRAÇÕES

Quase a completar um ano sobre o meu último post, chegou a oportunidade de retomar estas publicações, desta feita com novo formato e novas ilustrações, as quais se encontram coloridas no meu sketchbook com lápis de cor e contornos a esferográfica preta.
A numeração vai seguir a ordem das reproduções no meu livro de esquiços, pelo que sem uma ordem numérica seguida. Também será natural que repita algumas lendas que constam anteriormente deste blog, uma vez que tanto o colorido como o texto se encontram adaptados aos livros de apontamentos.
Fica claro que todas as ilustrações são da minha autoria, bem como o texto, devidamente adaptado da tradição oral e recolhida.