Na Nespereira,
concelho de Gouveia, situada na vertente norte da Serra da Estrela, existe a
Quinta do Paço. Pertencente à dita quinta, existe uma capela de invocação da
Senhora da Encarnação, onde se diz estar sepultado um nobre do tempo de D. João
II, que foi combatente deste monarca.
Quando o cognominado
Príncipe Perfeito visitou a Nespereira, no ido século XV, foi recebido pelo seu
importante e dedicado súbdito na Quinta do Paço, possivelmente assim chamada
porque foi, durante breve visita, o paço real.
O rei terá gozado
das delícias da boa mesa e de boa cama e partilhado com o anfitrião o exercício
da caça por aqueles montes e vales serranos. Como não podia deixar de ser, toda
a comitiva real teve, se não o mesmo, idêntico privilégio.
Dotado de alma
paciente, prenda com que se bafejavam os senhores da Beira, o anfitrião fez das
tripas coração para proporcionar aos convidados, mormente a el-rei, todos os
desvelos que alguns nem sequer mereciam. Lá diz o povo, na sua sabedoria
ancestral: “por causa dos santos beijam-se as pedras”.
A contas com tal
fidalguia, que não era pouca, o nobre da Nespereira deu grande desbaste na
despensa e maior rombo no nível dos tonéis, pois é sabido que gentes da cidade
e da corte, apanhando-se nestas terras, tratam de enfardar como se não comessem
há um ano, tudo à barba-longa.
Ora, conta-se que
depois de renhida caçada ao porco-montês, que levou el-rei a cavalgar por
serros e vales, matos e courelas, com as nádegas bem doridas de tanto solavanco
na sela, este regressou ao solar da quinta a suar em bica e sedento.
Fez saber ao nobre anfitrião
que tinha sede.
“Mandai trazer-me um púcaro de água fresca”, pediu o rei, sabendo que esse pedido era logo tomado como
uma ordem.
“Não quereis antes
um jarro de vinho, majestade?”
“Água fria lava e
cria. Se ma trouxerem da nascente, que venha em bilha de barro.”
“Pois seja como
quereis.”
E o nobre, com todo o respeito por sua real majestade,
mandou vir por um dos seus criados um púcaro de barro com água fresca, que ele
próprio fez tenção de entregar ao soberano. Porém, como estava muito nervoso perante
tão importante hóspede, quando ia a entregar o púcaro nas mãos do rei, deixou-o
cair.
“Perdoai, real
majestade, que as mãos me tremem como se estivessem engaranhadas com o frio.”
O rei sorriu perante
tanta atrapalhação e, com um gesto de mãos, acalmou o fidalgo.
Porém, toda a
comitiva do rei desatou a rir perante o incidente, pois se tinha apercebido da
atrapalhação do fidalgo da quinta. Até os escudeiros e criados daquela chusma
da corte, gargalharam estrondosamente perante o banal incidente.
Sem demonstrar
qualquer animosidade, antes demonstrando perspicaz discernimento, o rei nem
sequer sorriu; pelo contrário, afivelando no rosto um ar carrancudo e grave,
encarou os súbditos e fez estancar subitamente a copiosa galhofa.
“De que vos ris,
senhores?”
Como ninguém ousasse
abrir o bico, porquanto a resposta era evidente e podia ser tomada por ofensa,
o monarca voltou-se para todo o grupo dos da risota para lhes deixar, à guisa
de admoestação, esta sua leitura do acontecimento:
“Saibam todos os da
mofa, que este nobre cavaleiro, que agora deixou cair o púcaro perante o seu
rei, ao seu serviço e nas guerras do norte de África nunca deixou cair a
espada.”
Voltou-se para o
nobre da Nespereira e inquiriu:
“É verdade o que
estou a dizer, ou não?”
O anfitrião baixou
a cabeça em gesto humilde e confirmou:
“Ao vosso serviço,
majestade, a força dos meus braços rejuvenesceu e multiplicou-se ao dobro do
seu esforço. E mais teria feito, junto a vós, se tal pudesse ser ainda hoje.”
Voltou-se o rei para
os da sua corte:
“Aí vedes quanta
mágoa me causa o vosso riso zombeteiro perante um deslize tão insignificante,
quando eu sei, que de entre vós, se não deixásseis cair o púcaro, talvez não
vos fosse tão favorável erguer uma espada perante o inimigo e mantê-la na mão durante o confronto. Assim, qual será de mais valor: suster um púcaro de água em
tempo de paz ou erguer uma espada em solo de guerra?”
Nem será necessário
dizer que todos os presentes receberam o sermão com a cabeça inclinada para o
peito. Não se ouvia um sussurro, não se vislumbrava um movimento, como se todos estivessem vergados por um anátema.
Quando de novo
trouxeram outro púcaro de barro, o nobre da Nespereira teve a oportunidade de o
entregar nas mãos de el-rei, colocando um joelho em terra. E o rei bebeu com
plena satisfação, lançando ao solo, como era costume, a água que sobejou.
Os risos cessaram,
até porque, de entre aqueles que riram, estariam muitos que se temeram de lutar
e que, nas horas de refrega, desandaram para sítio mais seguro.