Na Rapa, um homem de
nome Miguel, sonhou que uma moura estava encantada no sítio do Alambique. Foi
com alguma esperança que o sonho lhe trouxe a possibilidade de se tornar rico e
de dar uma grande reviravolta na vida. Por isso, nessa mesma manhã foi até ao
tal sítio do Alambique sem dizer nada a ninguém. E efectivamente encontrou uma
moura sentada e repimpada, que tinha ao seu lado muita riqueza em ouro.
Não ficou ele
inebriado pela sorte que lhe batera à porta através do sono. Para seu espanto e
alguma dose de receio, a mulher, apesar de muito bonita, tinha o corpo de uma
cobra da cintura para baixo. A agravar esse aspecto, de vez em quando soltava
ela da boca uma língua bífida, igualzinha à das serpentes.
O Miguel ficou
paralisado e a pensar no que devia decidir.
Esteve vai não vai
para dar meia volta e sumir daquele sítio, mas a tentação da riqueza que lhe
aparecia em sonho foi muito mais forte.
Aquela espécie de
mulher tentou-o assim com voz amorável:
“Vem até mim, bom
homem”, convidou a moura com um largo sorriso. “Podes crer que é para o teu
bem.”
“Não és mulher nem
és cobra, tenho receio de me chegar e ser mordido com algum veneno, ora essa!”
“Tolice a tua. Já
viste ou ouviste alguma serpente falar? E já encontraste alguma com uma cabeça
como a minha, com este rosto bonito como não há na Rapa? E ainda há pelas
gentes desta terra que tenha tantas riquezas como estas?”
“Nada não”.
“Pois fica sabendo
que eu só me apresento assim por estar encantada da cintura para baixo e não da
cintura para cima. Sabes o que isso quer dizer?”
Ele meditou,
encolheu a beiça e condescendeu:
“Quer dizer que és
mulher e que te encantaram da cinta para baixo.”
“Nem mais”.
Ele ficou mais calmo
e decidido a não fugir dela. A voz da mulher era doce e agradável. Para mais,
ela estava adornada com louçanias e copiosa profusão de jóias na metade que
correspondia ao tronco de mulher.
“Se ele é isso, vou
aceitar chegar-me um pouco mais, pois tenho tanto medo das cobras, que me
pelo!”
A moura recebeu-o
com agrado e colocou à sua disposição todas as riquezas que ele via, expostas
como se estivesse em tenda de feira franca, especialmente um valioso galo de
ouro de tamanho natural.
“Miguel” continuou
ela, como se já o conhecesse há muito, “esta riqueza é toda tua, mas tens de me
deixar fazer uma coisa…”
“Pois sim, não seja
por isso. O que queres de mim?”
“Deixa-me beijar-te
e meter a língua na tua boca”.
Ele não achou graça
à proposta e recuou, enojado:
“Ui! Isso é que
não!”
Ela soltou a língua
bifurcada e insistiu:
“Não te farei mal,
pois quero ser desencantada; e tu, no fim de aceitares o que te proponho,
ficarás rico, muito rico!”
A língua dela
bailava como se fosse uma serpentina.
“Nessa é que eu não
me fio.”
Ela insistia, ele
negava.
Estavam eles naquela
como se a moura quisesse, contra o gosto do homem, uma nova razão do pecado
original.
Deitou-se ao galo de
ouro, arrancou-lhe a crista e fugiu, deixando a mulher e cobra a gritar como
ele, sabia o que tinha a fazer após a própria recusa.
Vendo que ela queria
ser desencantada daquela maneira, deitou-se ao galo de ouro, arrancou-lhe a
crista e fugiu, deixando a mulher e cobra a gritar:
“Miguel, meu
ingrato, que dobraste o meu encanto!”
O homenzinho nem
sequer ouviu as últimas palavras. Levava uma vaga amostra do conjunto das
riquezas, no entanto suficiente, na opinião dele, para se governar bem
governado.
Do mesmo que teve
artes para ludibriar a moura encantada, assim o Miguel tratou de passar a
patacos aquela crista de ouro. Mas não ficou indeciso sobre o dilema do que
podia render ou não aquela crista de ouro. Nem decerto fazia ideia quanto lhe
podia render, podendo ser o suficiente para compor a vidinha, não fosse ele enganar-se
e negociar com um ourives matreiro.
“Não vou trocar o
ouro em Celorico, onde já me conhecem e julgarão que o roubei, o que nem é
mentira nenhuma”, pensou ele, já penetrado pela cobiça. “Talvez a vá vender a
Trancoso, à feira ou a um dos mercados, que há por lá muitos”.
Tanta prontidão na
troca podia ser fatal. Em Trancoso, onde já tinha estado, podiam reconhecê-lo e
estranhar tão boa peça nas mãos de um zé-ninguém, ou ainda estar sujeito a
outros juízos que chegassem aos ouvidos das autoridades. E, sendo assim, o que
lhes iria dizer? Que tinha recebido o ouro, de mão-beijada, de uma mulher que
da cintura para baixo tinha o corpo de serpente?
Mais longe iria
fazer o negócio. Talvez em Vi-seu, mas era muitas léguas mais longe que a
Guarda, onde ainda não tinha ido alguma vez na vida.
Por fim, tomou a
decisão. Ia até à capital do seu distrito.
O Miguel tratou de ir vender a crista do galo à cidade da Guarda e aí
deram-lhe bom dinheiro por ela.
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