Proclama-se esta
lenda como sendo de Pena Verde.
Arrumada a Feira dos
Vinte, em Moreira, lugar da freguesia de Pena Verde, ficou um queijeiro de
Valverde entretido com uma súcia de amigos, brindando ao negócio que lhe veio
nesse dia de feição.
Não obstante ter
cuidado do bucho com a pinga, a boa pomada do lugar, e de ter por companhia
aqueles com que melhor privava, veio o queijeiro a dar-se por quite de rambóia,
despedindo-se dos camaradas. Deu largas ao macho e pôs-se a caminho da sua
terra. Meteu pela mata, por atalhos velhos e pedregosos, a cantarolar como um
passarinho, pois lá levaria o seu “grão na asa”.
A determinado passo,
calhou ver em sentido contrário à sua marcha, duas mulheres que caminhavam em
passo mais comedido. Uma delas era ainda nova, rapariga casadoura, enquanto a
outra, que parecia mancar com o amparo de uma varinha, era velha e rugosa como
tronco de pinheiro. O queijeiro,
à sua guisa de cumprimento, mais para a velha do que para a companheira,
chalaceou como se versejasse:
“Adeus lugar de
Moreira
Terra de muita
feiticeira!”
Pararam nova e
velha, ferindo-o esta última com olhar viperino. E foi também a mais idosa, com
ar de ferocidade, que largou a aguilhada:
“Pedaço d’asno!
Vais-te arrepender com língua de palmo por largares a bosteira!”
A mais nova, já
conhecendo em que azeites fritavam os fígados da mais velha, acalmou-a.
“Deixe lá, senhora
mãe! O raio do homem vai perdido de bêbado!”
Vista a resposta, o
queijeiro baniu a réplica, tentou dar alguns passos sem vacilações, abanou os
braços e sumiu-se nas brenhas.
Andou e andou até
que a noite o apanhou de tal sorte que não conseguia enxergar cisco à frente do
nariz. O homem, que não vinha desperto em todos os sentidos, esfregou os olhos
e estacou. Tinha-se perdido no meio daquelas matas, ele que conhecia o caminho
como a palma das suas mãos.
“Quem me mandou
tardar na feira? Já me dizia o meu pai, que Deus tenha: tão grande é o erro
como o que erra.”
Pelo seu lado, a
alimária já dava mostras de desassossego e largou sem dizer adeus por um
caminho vesgo. O dono apenas lhe sentiu o matraquear das patas no chão e foi um
ar que lhe deu!
“Volta aqui,
alimária do diabo! Não é do meu entendimento ter-te dado carta-branca para ires
sem minha ordem!”
Atarantado, o
queijeiro correu por ali às cegas, gritando por todas as almas do outro mundo e
das que para lá haviam de ir até cair exausto.
Quando chegaram os
primeiros raios de luz, o homem ergueu-se e deu em procurar a bestinha, quando
encontrou no caminho dois homens que vinham em sentido contrário ao seu.
“O compadre vai
aflito” reconheceu um deles. “Será que perdeu alguma coisa?”
“Deus se amerceie de
mim! Perdi o cavalo que se deitou a fugir com a carga de queijos que sobraram
da feira.”
“Deus se amerceie de
ambos, pois há por aqui muitos lobos em jejum.”
O outro homem
concordou.
“Quando sentem coisa
para comer, juntam-se todos e vêm num foguete!”
Aquelas palavras não
eram animadoras, mas o queijeiro achou que não era momento para se achar meditabundo.
“Se os meus amigos
me fizerem o favor, três a procurar é melhor do que um”.
Os três andaram para
um lado e para o outro, até que um deles encontrou alguns queijos no chão, na
zona de fragas e barrocos que é conhecida por Medronheiro, onde existem fragas
altas como ciclopes. Os poucos queijos sobejos estavam espalhados pelo chão e o
machinho morto, entalado na brecha entre dois penedos. Com o nevoeiro e o medo
dos lobos, o animal entrara naquela fenda e já não conseguira sair.
“Desgracei a minha
vida por más palavras! Foi maldição da velha de Moreira!”
Assim gritou o pobre
queijeiro, arrepelando-se, enquanto chorava baba e ranho.
Não era hora para
tendências de mofa e reinação, perante o choro do queijeiro; no entanto, um dos
homens, adivinhando que ali havia maldição, não deixou de fazer valer a razão
do aforismo popular:
“As palavras fazem
muitas vezes mais que as pancadas.”
Ao outro dia, o
queijeiro entrou na igreja de Valverde. Ia cabisbaixo e naturalmente triste,
ele que não era homem de frequentar a igreja. Entre duas orações, confessou:
“Fiquei sem os meus
bens, por culpa minha os perdi. Perdoe-me, Senhor, pelo que eu disse. As
mulheres de Moreira não são feiticeiras”.
Benzeu-se, saiu da
igreja e aprendeu duas lições: não fazer serão na feira e ter tento na língua.
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