Em Abrantes existia
um casal que parecia ser muito feliz. O homem dizia bem da mulher e a mulher
não dizia mal dele. Não se ouviam discutir, estava tudo aparentemente muito bem
como se aquele fosse o par ideal.
Havia alturas em que
a mulher, vendo o marido cansado, fazia um chá para ele ia levar-lho à cama.
Dormia então o homem descansado, acordando no dia seguinte com muito melhor
disposição e desenfado.
Os habitantes da
aldeia não estranhavam que pudesse haver qualquer mistério naquela relação que
era aparentemente feliz. E muito menos a más-línguas, como é comum nos
lugarejos, terem matéria para relatar algum caso que suscitasse perplexidades.
No entanto, alguém
andava a dizer ao marido que a mulher era uma bruxa, mas o homem não
acreditava.
“Nem me diga isso,
que ela nem é bruxa nem vai às bruxas.”
“Pois acredite, por
muito que lhe custe e por demais ser ela tão boa para si.”
“Ela é tão boazinha
que me leva o chá à cama”, assegurava o marido.
“Assim será” anuiu o
informador”. Mas ande então o senhor mais desperto e deixe de beber o chá”.
A mesma pessoa lá
vinha novamente com a mesma ladainha e, apesar de o marido, que era sapateiro,
continuar a negar e a prometer arrancar os cabelos se fosse verdade, o certo é
que foi amolecendo na sua convicção e resolveu tirar as coisas a limpo.
Aquela “cerimónia”
do chá, pensando bem, deixava-o numa noite tranquilo, tanto assim que mal o
tomava, adormecia e dormia como uma pedra. De resto, nada mais havia de
estranho no comportamento da companheira.
Numa noite, decidido
a fazer a prova dos nove, fingiu que bebeu o chá que a mulher lhe levou e ficou
desperto. Ficou a espreitar o que a mulher fazia, depois de a ver sair do
quarto com a certeza de que o tinha deixado a dormir, e a bom dormir.
Levantou-se sem
fazer barulho e, pé ante pé, seguiu-a até à cozinha, onde ela tinha acendido
uma vela. Viu-a então despir e besuntar o corpo com uma pomada que tinha
escondido por ali. Depois daquela operação, feita em três tempos, ela comeu um
ovo cru com chouriço e disse:
“Avoa, avoa, por
cima de toda a folha!”
E desapareceu.
O homem, que queria
saber o que tinha acontecido, besuntou-se com a mesma pomada e comeu o ovo e o
chouriço. Como ela invocou “por cima de toda a folha”, ele pensou que ela ia
voar alto, como o faziam as bruxas; mas ele, que não era de altos voos, achou
por bem voar mais baixinho. Então, por sua vez, recitou:
“Avoa, avoa, por
baixo de toda a folha!”
Nesse momento o
homem saiu a voar pela porta fora e, para seu mal, em vez de voar por cima,
voou por baixo, em voo rasante, de modo que o seu pobre corpo roçou por silvas,
tojos, ramos de árvores e tudo o que apanhou, antes de aterrar num terreiro
onde as bruxas se reuniam. Estava todo arranhado, bem amolgado no corpo que lhe
doía como se tivesse levado uma sova. O unto que pusera no corpo, pelos vistos,
dava-lhe asas mas não o protegia dos obstáculos.
Sempre o homem que o
avisara tinha razão. A mulher lá estava na assembleia, parecendo-lhe até que
presidia entre as demais. O ajuntamento era ao ar livre, numa encruzilhada de
caminhos e era quase todo preenchido por mulheres, que ele não reconheceu a não
ser a sua. Porém, entre elas andava um homem com aspecto esquisito e que também
parecia dar ordens, inclusive sobre a sua mulher.
Houve uma voz na
cabeça do homem que lhe segredou: cumpre o teu dever, aconteça o que acontecer.
Saiu então ele do
sítio onde se escondera e de onde presenciou a cena e apareceu no terreiro,
agora andando pelo seu pé.
A mulher, ao vê-lo
todo arranhado, admoestou:
“Não devias estar
aqui. Quem te mandou cumprir as regras que não são tuas?”
“Vim saber o que se
passa…”
“Fizeste muito mal.”
“Ora, mal daqui,
pior dali, vale mais um testemunho de vista que dez de ouvido.”
“Nem sabes onde te
vieste meter, desmiolado marido!”
Ela pegou-lhe por um
braço e, tomando-o de parte, segredou:
“Já que estás aqui
vais beijar os pés a Nosso Senhor!”
“E quem é esse Nosso
Senhor, que não o vejo?”
“É aquele homem que
ali está” esclareceu ela, apontando o tal de mau aspecto.
Desta vez precavido,
o homem olhou para onde a mulher apontava e temeu que, em vez de Nosso Senhor,
fosse o Demónio. Sempre tinha ouvido dizer que o Diabo costumava aparecer nas
assembleias das bruxas e que com elas bailava e fazia mil diabruras.
“Assim o farei,
desde que ele tenha os pés bem lavados”, concordou o marido indo de encontro ao
dito senhor que o aguardava com ares de superioridade.
Vai daí, ajoelhando-se como se fosse para beijar, picou o outro num pé,
com uma sovela que tinha nos bolsos, e o Diabo estoirou.
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