A
serra do Picoto, como filha da serra da Lapa, é áspera e nua como estopa de
linho no sítio em que as rochas se estendem pelos cumes, encabritados uns sobre
os outros. Quando as neves e os sincelos se derretem nos fraguedos descarnados
de vegetação, os raios de sol fazem nas rochas o cintilar da prata e do ouro.
Uma
ala do exército francês, que invadira Portugal, correndo em direcção a Viseu,
sob o comando de um oficial de Massena, passou por Gradiz e subiu a Monções,
chegando os soldados a esta povoação empinada muito esfalfadinhos da subida a
mata-cavalos e mais encharcados em suor do que trapos de cozinha.
Ora,
essa subida é puxada e, apesar da belíssima paisagem abundante e luxuriosa,
para quem não vai propriamente para a contemplar, é obra. Para aqueles
chanfrados que a subiam com mochila, farda, arma, munições e outros apetrechos
bélicos, sobrava-lhes o trabalho de pernas.
Ninguém
os recebeu em Monções, nem de braços abertos nem com eles fechados. Não
encontraram os invasores vivalma que lhes pudesse valer com uma sede de água,
ou em quem se pudessem vingar por tanto sacrifício baldado de rapina. Deram em
vasculhar casa por casa à cata de comida e bebida, mas a única coisa com que se
regalaram foi darem azo a partir todo o caco que vissem inteiro. O povinho
tinha recebido intimação para abandonar a aldeia e não deixar para trás migalha
que tapasse a cova de um dente dos francesinhos.
Arrombaram
a porta da capela e, achando a imagem de Santo António, erecto nas suas vestes
de franciscano e com a calva monástica a luzir, propuseram levá-la com eles,
pois era a única coisa de valor que encontravam naquela desolação.
O
soldado que retirou a imagem estava a escondê-la, mas o oficial, que era
cobiçoso, deu-lhe uma ordem:
“O
santo é meu, soldado. Como não há saque nesta aldeia, esse é o único bem que
levo daqui”.
Ao
retomarem a marcha, despertou-lhes a atenção umas cintilações que ofereciam as
lajes escorregadias da serra, porque tinha chovido na véspera e os calhaus
reflectiam os múltiplos regos de água como se fossem espelhos.
Conta
a lenda que, amedrontados, julgando-se tratar do exército anglo-luso, largaram
a imagem do santo e deitaram a correr pela serra da Lapa como se fossem
perseguidos pelo próprio Demo.
O
que subsiste da lenda é a confusão dos militares: tomaram as cintilações pelo
luzir frio do gume das baionetas e não esperaram pela confirmação, dando às
pernas na fuga como se elas não tivessem na conta algumas léguas de subida.
Diz
o povo que nesse sítio estão sete fontes que brotam, cada uma, sete fios de
água.
TEXTO E GRAVURA: SANTOS COSTA
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