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segunda-feira, 20 de agosto de 2018

AGUIAR DA BEIRA - A FRAGA DO MEDRONHEIRO (3)


Proclama-se esta lenda como sendo de Pena Verde.
Arrumada a Feira dos Vinte, em Moreira, lugar da freguesia de Pena Verde, ficou um queijeiro de Valverde entretido com uma súcia de amigos, brindando ao negócio que lhe veio nesse dia de feição.
Não obstante ter cuidado do bucho com a pinga, a boa pomada do lugar, e de ter por companhia aqueles com que melhor privava, veio o queijeiro a dar-se por quite de rambóia, despedindo-se dos camaradas. Deu largas ao macho e pôs-se a caminho da sua terra. Meteu pela mata, por atalhos velhos e pedregosos, a cantarolar como um passarinho, pois lá levaria o seu “grão na asa”.
A determinado passo, calhou ver em sentido contrário à sua marcha, duas mulheres que caminhavam em passo mais comedido. Uma delas era ainda nova, rapariga casadoura, enquanto a outra, que parecia mancar com o amparo de uma varinha, era velha e rugosa como tronco de pinheiro.          O queijeiro, à sua guisa de cumprimento, mais para a velha do que para a companheira, chalaceou como se versejasse:

“Adeus lugar de Moreira
Terra de muita feiticeira!”

Pararam nova e velha, ferindo-o esta última com olhar viperino. E foi também a mais idosa, com ar de ferocidade, que largou a aguilhada:
“Pedaço d’asno! Vais-te arrepender com língua de palmo por largares a bosteira!”
A mais nova, já conhecendo em que azeites fritavam os fígados da mais velha, acalmou-a.
“Deixe lá, senhora mãe! O raio do homem vai perdido de bêbado!”
Vista a resposta, o queijeiro baniu a réplica, tentou dar alguns passos sem vacilações, abanou os braços e sumiu-se nas brenhas.
Andou e andou até que a noite o apanhou de tal sorte que não conseguia enxergar cisco à frente do nariz. O homem, que não vinha desperto em todos os sentidos, esfregou os olhos e estacou. Tinha-se perdido no meio daquelas matas, ele que conhecia o caminho como a palma das suas mãos.
“Quem me mandou tardar na feira? Já me dizia o meu pai, que Deus tenha: tão grande é o erro como o que erra.”
Pelo seu lado, a alimária já dava mostras de desassossego e largou sem dizer adeus por um caminho vesgo. O dono apenas lhe sentiu o matraquear das patas no chão e foi um ar que lhe deu!
“Volta aqui, alimária do diabo! Não é do meu entendimento ter-te dado carta-branca para ires sem minha ordem!”
Atarantado, o queijeiro correu por ali às cegas, gritando por todas as almas do outro mundo e das que para lá haviam de ir até cair exausto.
Quando chegaram os primeiros raios de luz, o homem ergueu-se e deu em procurar a bestinha, quando encontrou no caminho dois homens que vinham em sentido contrário ao seu.
“O compadre vai aflito” reconheceu um deles. “Será que perdeu alguma coisa?”
“Deus se amerceie de mim! Perdi o cavalo que se deitou a fugir com a carga de queijos que sobraram da feira.”
“Deus se amerceie de ambos, pois há por aqui muitos lobos em jejum.”
O outro homem concordou.
“Quando sentem coisa para comer, juntam-se todos e vêm num foguete!”
Aquelas palavras não eram animadoras, mas o queijeiro achou que não era momento para se achar meditabundo.
“Se os meus amigos me fizerem o favor, três a procurar é melhor do que um”.
Os três andaram para um lado e para o outro, até que um deles encontrou alguns queijos no chão, na zona de fragas e barrocos que é conhecida por Medronheiro, onde existem fragas altas como ciclopes. Os poucos queijos sobejos estavam espalhados pelo chão e o machinho morto, entalado na brecha entre dois penedos. Com o nevoeiro e o medo dos lobos, o animal entrara naquela fenda e já não conseguira sair.
“Desgracei a minha vida por más palavras! Foi maldição da velha de Moreira!”
Assim gritou o pobre queijeiro, arrepelando-se, enquanto chorava baba e ranho.
Não era hora para tendências de mofa e reinação, perante o choro do queijeiro; no entanto, um dos homens, adivinhando que ali havia maldição, não deixou de fazer valer a razão do aforismo popular:
“As palavras fazem muitas vezes mais que as pancadas.”
Ao outro dia, o queijeiro entrou na igreja de Valverde. Ia cabisbaixo e naturalmente triste, ele que não era homem de frequentar a igreja. Entre duas orações, confessou:
“Fiquei sem os meus bens, por culpa minha os perdi. Perdoe-me, Senhor, pelo que eu disse. As mulheres de Moreira não são feiticeiras”.
Benzeu-se, saiu da igreja e aprendeu duas lições: não fazer serão na feira e ter tento na língua.

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