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sábado, 18 de agosto de 2018

ABRANTES - POR CIMA E POR BAIXO (1)

Em Abrantes existia um casal que parecia ser muito feliz. O homem dizia bem da mulher e a mulher não dizia mal dele. Não se ouviam discutir, estava tudo aparentemente muito bem como se aquele fosse o par ideal.
Havia alturas em que a mulher, vendo o marido cansado, fazia um chá para ele ia levar-lho à cama. Dormia então o homem descansado, acordando no dia seguinte com muito melhor disposição e desenfado.
Os habitantes da aldeia não estranhavam que pudesse haver qualquer mistério naquela relação que era aparentemente feliz. E muito menos a más-línguas, como é comum nos lugarejos, terem matéria para relatar algum caso que suscitasse perplexidades.
No entanto, alguém andava a dizer ao marido que a mulher era uma bruxa, mas o homem não acreditava.
“Nem me diga isso, que ela nem é bruxa nem vai às bruxas.”
“Pois acredite, por muito que lhe custe e por demais ser ela tão boa para si.”
“Ela é tão boazinha que me leva o chá à cama”, assegurava o marido.
“Assim será” anuiu o informador”. Mas ande então o senhor mais desperto e deixe de beber o chá”.
A mesma pessoa lá vinha novamente com a mesma ladainha e, apesar de o marido, que era sapateiro, continuar a negar e a prometer arrancar os cabelos se fosse verdade, o certo é que foi amolecendo na sua convicção e resolveu tirar as coisas a limpo.
Aquela “cerimónia” do chá, pensando bem, deixava-o numa noite tranquilo, tanto assim que mal o tomava, adormecia e dormia como uma pedra. De resto, nada mais havia de estranho no comportamento da companheira.
Numa noite, decidido a fazer a prova dos nove, fingiu que bebeu o chá que a mulher lhe levou e ficou desperto. Ficou a espreitar o que a mulher fazia, depois de a ver sair do quarto com a certeza de que o tinha deixado a dormir, e a bom dormir.
Levantou-se sem fazer barulho e, pé ante pé, seguiu-a até à cozinha, onde ela tinha acendido uma vela. Viu-a então despir e besuntar o corpo com uma pomada que tinha escondido por ali. Depois daquela operação, feita em três tempos, ela comeu um ovo cru com chouriço e disse:
“Avoa, avoa, por cima de toda a folha!”
E desapareceu.
O homem, que queria saber o que tinha acontecido, besuntou-se com a mesma pomada e comeu o ovo e o chouriço. Como ela invocou “por cima de toda a folha”, ele pensou que ela ia voar alto, como o faziam as bruxas; mas ele, que não era de altos voos, achou por bem voar mais baixinho. Então, por sua vez, recitou:
“Avoa, avoa, por baixo de toda a folha!”
Nesse momento o homem saiu a voar pela porta fora e, para seu mal, em vez de voar por cima, voou por baixo, em voo rasante, de modo que o seu pobre corpo roçou por silvas, tojos, ramos de árvores e tudo o que apanhou, antes de aterrar num terreiro onde as bruxas se reuniam. Estava todo arranhado, bem amolgado no corpo que lhe doía como se tivesse levado uma sova. O unto que pusera no corpo, pelos vistos, dava-lhe asas mas não o protegia dos obstáculos.
Sempre o homem que o avisara tinha razão. A mulher lá estava na assembleia, parecendo-lhe até que presidia entre as demais. O ajuntamento era ao ar livre, numa encruzilhada de caminhos e era quase todo preenchido por mulheres, que ele não reconheceu a não ser a sua. Porém, entre elas andava um homem com aspecto esquisito e que também parecia dar ordens, inclusive sobre a sua mulher.
Houve uma voz na cabeça do homem que lhe segredou: cumpre o teu dever, aconteça o que acontecer.
Saiu então ele do sítio onde se escondera e de onde presenciou a cena e apareceu no terreiro, agora andando pelo seu pé.
A mulher, ao vê-lo todo arranhado, admoestou:
“Não devias estar aqui. Quem te mandou cumprir as regras que não são tuas?”
“Vim saber o que se passa…”
“Fizeste muito mal.”
“Ora, mal daqui, pior dali, vale mais um testemunho de vista que dez de ouvido.”
“Nem sabes onde te vieste meter, desmiolado marido!”
Ela pegou-lhe por um braço e, tomando-o de parte, segredou:
“Já que estás aqui vais beijar os pés a Nosso Senhor!”
“E quem é esse Nosso Senhor, que não o vejo?”
“É aquele homem que ali está” esclareceu ela, apontando o tal de mau aspecto.
Desta vez precavido, o homem olhou para onde a mulher apontava e temeu que, em vez de Nosso Senhor, fosse o Demónio. Sempre tinha ouvido dizer que o Diabo costumava aparecer nas assembleias das bruxas e que com elas bailava e fazia mil diabruras.
“Assim o farei, desde que ele tenha os pés bem lavados”, concordou o marido indo de encontro ao dito senhor que o aguardava com ares de superioridade.
Vai daí, ajoelhando-se como se fosse para beijar, picou o outro num pé, com uma sovela que tinha nos bolsos, e o Diabo estoirou. 

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