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segunda-feira, 20 de abril de 2020

AGUIAR DA BEIRA - A CABICANCA - lenda nº 90


Texto e ilustração de Santos Costa

Conta a lenda que certo dia apareceu na torre da igreja de Aguiar da Beira um enorme pássaro, com um bico tamanhão nunca visto ou contado, ouvido ou sonhado. O povo, horrorizado com a aventesma, deixou de ir à igreja ouvir missa e exclamava:
- Santo Deus! Que bicanca aquela! Que bicanca!
Aconteceu passar por ali um almocreve de Trancoso, de nome Martinho Afonso e de alcunha o Escorropicha, por ter fama de enxugar uma boa soma de copos de vinho.
Este Afonso, que estava farto de correr trancos e barrancos, sabia-a toda! Para além disso, era homem de coragem e porventura lá tinha então o seu copito no bucho e achou que o caso lhe podia trazer mordomias e alvíssaras.
Era homem de coragem e porventura lá tinha então o seu copito e achou que aquele era dos tais trechos que lhe podia trazer mordomias e alvíssaras.
Carregou uma espingarda e dirigiu-se para a igreja onde a Cabicanca, indiferente no seu mirante, gozava o seu bocado. O Escorropicha com um olho aberto e outro arremelgado, como regem as leis da balística, apontou alto e com um pum de atroar a Lapa inteira, abateu a cegonha.
 - O Escorropicha matou a Cabicanca!
Martinho Afonso foi guindado aos píncaros do heroísmo e transportado em ombros por toda a vila. O povo estava disposto a compensar o salvador: farnéis de bom chouriço e salpicão; azeite aos almudes; bons odres de vinho; cabritos e bolsas recheadas.
Passada a história à História, depois da morte do Escorropicha, subsistiu a veneração. O pároco deu em pedir um padre-nosso para alívio da alma do valente, todos os domingos, na ocasião da missa. Ainda hoje, referindo-se aos habitantes de Aguiar, muita gentinha os apelida de cabicancas, na amálgama da lenda que se tornou história.

domingo, 19 de abril de 2020

CARREGAL DO SAL - OS TRÊS SANTOS - lenda nº 52


Texto e ilustração de Santos Costa

Resolveram duas santas e um santo passearem num certo dia de sol. Combinaram subir o monte que se encontra sobranceiro a sul de Beijós.
Assim fizeram, lépidos, sorridentes e a bendizerem as graças que Deus lhes dava para os satisfazerem com um dia tão maravilhoso.
Quando chegaram a meio da encosta, uma das santas, possivelmente já cansada e em face da bela vista que daquele ponto se descortinava, resolveu que não subia mais e falou disso aos dois companheiros. Ficou por ali a contemplar Beijós, Pardieiros e a serra do Caramulo. E disse para si:
- Não podia ter escolhido lugar mais bonito! Vejo duas povoações e uma serra, é o lugar ideal para mim!
O outro companheiro e a outra santa continuaram a subida, até que, chegados a cerca de dois terços da caminhada, a outra santa resolveu também declarar ao companheiro que não subia mais acima, ficando por ali. Tal como fizera a outra santa, esta resolveu sentar-se e contemplar a paisagem, justificando assim:
- Que belo lugar, este! Que bonita toda esta vegetação, que se consegue observar deste local! Já não saio daqui!
O santo não ficou convencido e continuou a subir, prosseguindo sozinho a caminhada. Foi então mais para sul, agora a descer para a serra da Estrela. Chegado a um ponto mais abaixo, junto a um ribeiro e vinhedos, saboreou um cacho de uvas e ficou-se por ali. E disse:
- Ora cheguei onde quis e queria parar! Este é o sítio mais belo desta serra, de onde posso contemplar todo este vasto panorama!
Assim o povo passou a designar os três santos como Nossa Senhora da Pégada, Nossa Senhora dos Milagres e S. Tiago das Laceiras, cada um com uma capelinha no sítio onde resolveram ficar.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

MIRANDELA - DONA CHAMÔRRA - lenda nº 39


Texto e ilustração de Santos Costa

Dona Chamôrra era uma princesa muito rica, ambiciosa e má. Tinha um castelo no monte mais alto de uma povoação dominada por ela. Os habitantes eram seus escravos, sendo obrigados a entregarem-lhe todo o ouro que ganhavam com o seu trabalho. Para que não se esquecessem desse dever e de subirem ao monte para fazerem entrega dessa obrigação, a princesa subia a uma das torres do castelo e tocava três vezes num gongo de ouro.
Lá em baixo, o povo dizia:
- Vamos, que Dona Chamôrra chama!
Ou ainda:
- Vamos que a Dona Chama e não gosta de esperar!
Ela amontoava riquezas e mais riquezas no seu castelo, ao passo que o povo passava fome.
De tanto sacrifício e da obrigação desproporcionada, o povo resolveu revoltar-se, deixando a partir daí de lhe levarem o ouro. Ela bem tocava no gongo, mas não recebia qualquer contributo dos súbditos.
Com receio que a revolta degenerasse e que os aldeãos fossem ao castelo para reaverem o ouro que tinham entregado, ela resolveu escondê-lo num poço bem fundo, colocando um enorme pedregulho a tapá-lo. E, não contente com essa artimanha, que dissimulava toda a riqueza, bem perto daquele poço um outro foi enchido de peste, cobrindo-o com um pedregulho igual, de modo que não havia diferença entre os dois esconderijos.
Em seguida, foi à torre do castelo e tocou o gongo:
- Vou desaparecer, mas vós de nada lucrareis. Quem tentar encontrar o poço onde está o ouro escondido, arrisca-se a encontrar o poço da peste e, se isso acontecer, todos vós morrereis.
Diz a lenda que os poços ainda lá estão e que ninguém se atreve a lá ir. Pelo menos, o povo ficou livre.

terça-feira, 14 de abril de 2020

GOUVEIA - A QUEDA DO PÚCARO - lenda nº 24


Texto e ilustração de Santos Costa

Na Nespereira, concelho de Gouveia, situada na vertente norte da Serra da Estrela, existe a Quinta do Paço. Ao próprio topónimo da povoação anda ligada a figura lendária de uma Inês Pereira, que daria Inespereira e posteriormente Nespereira, mas isso é conjectura lendária.
Pertencente à dita quinta, existe uma capela de invocação da Senhora da Encarnação, onde se diz estar sepultado um nobre do tempo de D. João II, que foi combatente deste monarca.
Quando o cognominado Príncipe Perfeito visitou a Nespereira, no ido séc. XV, foi recebido pelo seu importante súbdito na Quinta do Paço, possivelmente assim chamada porque foi, durante breve visita, o paço real.
O rei fez saber ao nobre anfitrião que tinha sede e este, com todo o respeito por sua real majestade, mandou vir por um dos seus criados, um púcaro de água fresca e cristalina, que ele próprio fez tenção de entregar ao soberano. Porém, como estava muito nervoso perante a visita de tão importante hóspede, inclusivamente com tremura das mãos – ele, que na guerra, as tinha firmes para a espada – quando ia a entregar o púcaro nas mãos do rei, deixou-o cair.
Toda a comitiva do rei desatou a rir perante o incidente, pois se tinha apercebido da atrapalhação do fidalgo da quinta.
Sem demonstrar qualquer animosidade, o rei voltou-se para todo o grupo dos da risota para lhes deixar, à guisa de admoestação, esta sua leitura do acontecimento:
- Saibam todos os da mofa, que este nobre cavaleiro, que agora deixou cair o púcaro perante o seu rei, ao seu serviço e nas guerras do norte de África nunca deixou cair a espada.
Os risos cessaram, até porque, de entre aqueles que riram, estaria algum que se temera de lutar e que, nas horas de refrega, desandara para sítio mais seguro.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

FERREIRA DO ZÊZERE - A ÚLTIMA MOEDA - lenda nº 32


Texto e ilustração de Santos Costa

Uma mulher casada de Ferreira do Zêzere recorria à venda de lenha miúda para sustentar a casa. Apanhava essa lenha nas matas. Um dia deu de caras com uma estranha criatura, junto ao Penedo da Bica e perto da ribeira da Cabrieira. O homem vinha com estranha indumentário, que logo o identificava como mouro.
-Venho pedir-te que ajudes a minha esposa a dar à luz - disse-lhe ele.
A mulher, ainda receosa, assentiu com a cabeça e seguiu o mouro até ao penedo que logo se abriu para eles entrarem.
- Entra e não tenhas medo, que esta é a minha casa.
Era uma caverna onde o ouro luzia pelos cantos.
Após o parto, a mulher cristã apresentou ao mouro uma linda menina acabada de nascer.
- Pois sim, mulher, chegou a hora de te agradecer.
O mouro tinha na mão uma cafeteira que estendeu à mulher.
- Aqui tens o teu pagamento.
Mal se sentiu sozinha, a mulher abriu a cafeteira e viu que dentro só havia carvões. Descoroçoada e a maldizer o mouro, a mulher deitou fora os carvões para ficar com a cafeteira. Mas mal os carvões caíam na terra, assim se transformavam em moedas de ouro. Quando ela as quis apanhar, desapareceram.
Em casa, contou ao marido e este riu-se.
- Não acredito nessa patranha, mulher. Onde é que já se viu o carvão transformar-se em ouro? Sempre ficamos com a cafeteira, que ainda há-de ter algum préstimo. Ao menos, se tivesse guardado só um, sempre teríamos uma única moeda de ouro.
- Custa-me ainda a acreditar que fiz tamanha tolice!
No entanto, quando inclinou a cafeteira saltou de dentro para a sua mão a última moeda de ouro.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

MANTEIGAS - O PASTOR E A ESTRELA - lenda nº 65


Texto e ilustração de Santos Costa

Quando as trevas caíam sobre os picos da serra, havia um pastor que se deslocava para um dos cumes para se encontrar com alguém muito querido. Não se ia encontrar com uma namorada, mas com uma estrela. Uma estrela que brilhava no céu, como se o fizesse só para ele e não para os montes e os vales por onde correm os animais.
Depois de se familiarizar com a estrela, o pastor não passou uma noite, em que o céu permite a cintilação estrelada, sem que visitasse a sua estrela para falar com ela. O regozijo fraternal, que estremecia nele e parecia tremeluzir nela, deixava-os em contemplação mútua durante longos períodos de tempo.
Este costume chegou aos ouvidos do povo e daí ao rei, que mandou ir o pastor à sua presença na corte.
- Quero que me dês essa tua estrela! Em troca, dar-te-ei muitas riquezas deste meu reino, à tua escolha.
Fez-se silêncio. De olhos pousados no chão, como se temesse a resposta, o pastor ergueu a cabeça e disse:
- Não dou a minha estrela, real majestade, nem por todos os bens deste mundo!
O rei não insistiu, pois viu naquele pastor o grande gesto de quem aceitaria a morte, mas não a entrega. Deixou ir o pastor em paz.
Ao voltar ao alto da serra, o pastor encontrou a sua estrela, desta vez guiado por uma melodia que parecia vir dos céus. Lá estava ela, a brilhar, como que a sorrir-lhe. Ela terá receado que o pastor a trocasse pelas riquezas, mas ele voltara para ela repudiando tudo o resto.
 - De hoje em diante - disse o pastor - esta serra vai ter o teu nome e chamar-se-á a Serra da Estrela.
E assim foi, pois o pastor divulgou aquela fidelidade.
A lenda afirma que ainda hoje se vê na serra uma estrela que brilha diferente das outras.